domingo, 9 de janeiro de 2011

Varadouro 7 º fez o Governador chorar

Varadouro fez o Governador chorar
Por Elson Martins
Existe em Rio Branco algum cidadão disposto a ceder de graça (ou quase), um imóvel no centro para a redação de um jornal que se disponha enfrentar os poderosos, estejam eles no poder ou fora do poder? De preferência, alguém que conheça e assuma a linha editorial do jornal, não interfira nela e só apareça na redação para perguntar se o pessoal quer um cafezinho quente, uma tapioca ou um suco de cupuaçu?
Desculpem a impertinência da pergunta! É que ao iniciar o texto de apresentação do Varadouro nº 7 que estamos disponibilizando a partir de hoje neste site, numa versão em PDF, me veio a lembrança do seu Elizeu, pai da Eurenice (atualmente professora da Universidade Federal do Acre), que em 1977 resolveu o problema de espaço para a redação do jornal. Ocupamos por mais de dois anos, pagando aluguel simbólico (mesmo assim com atraso), um prédio que ele acabara de construir na Travessa Epaminondas Martins, 141, no bairro do Bosque, mantendo com os locadores um relacionamento incomum.
Ex-guarda territorial aposentado, Elizeu vivia de uma minguada renda, que mal dava pra cobrir as despesas familiares. Entretanto, deixou de alugar o imóvel para depósito ou escritório de uma firma rica, preferindo confiá-lo a um bando de pés rapados (desculpem o exagero, mas não já chamaram os jornalistas de mendigos de gravata?). A casa do nosso amigo fica de frente para a Avenida Getulio Vargas, no topo da ladeira da maternidade, e o prédio que ocupamos, nos fundos do quintal com entrada pela Epaminondas Martins. Até hoje, 30 anos após, parece não ter havido grandes mudanças por lá.
Do tipo falastrão e presepeiro, Elizeu gostava de entrar na redação varando o quintal pelos fundos, com alguma oferenda: café quentinho com pão e manteiga, tapioca ou pamonha, com o que adquiria o direito de interromper nosso trabalho e contar prosas nem sempre apreciáveis. As guloseimas, principalmente quando o Alberto furtado demorava-se na redação conferindo os jornais vendidos em banca, acabavam num relâmpago. Pior ainda quando a visita coincidia com a dobragem do jornal que reunia respeitável contingente. Se o aluguel estava atrasado, Elizeu prolongava a conversa acrescentando alguma historinha engraçada sobre suas dificuldades financeiras. Mas não perdíamos o rebolado, convencidos de que ele apenas brincava com nosso constrangimento.
Decidi lembrar o relacionamento com o simpático locador porque se trata de mais um elemento diferenciador do jornalismo que praticávamos no fim dos anos setentas e começo dos oitentas. E fico me perguntando por que essa coisa tão bonita se perdeu! Enfrentamos, em 1998, enorme dificuldade para circular com O Acre, herdeiro do Varadouro, entre outras coisas porque não contamos com os Elizeu, os Arquilau, os Alberto Furtado, os Abrahim Farhat, os Terri Aquino e tantos outros que encararam com entusiasmo e seriedade a tarefa de produzir um bom jornal em décadas passadas.
A carência a que me refiro se estende aos repórteres, mesmo os que se lançam na condição de estagiários e deveriam aproveitar a chance de se profissionalizar. Eles trabalham sem o menor tesão as matérias jornalísticas, como se não fossem fisgados, ainda, pelo amor à profissão. Por certo, não acreditam que um jornalzinho alternativo possa contribuir para melhorar as condições de vida na sociedade da qual fazem parte. Talvez tenham razão, mas quero relatar aos jovens destes novos e confusos tempos da imprensa escrita, um fato que ilustra o que um pequeno jornal como Varadouro, quando feito com alma, verdade e coragem é capaz de provocar.
Na edição agora disponibilizada, colocamos na capa a foto de uma mulher seringueira com a filha no colo, aguardando atendimento médico num posto de saúde em Sena Madureira; e logo abaixo, o título arrasador com pincel atômico: “Nóis queria um Governador que olhasse pra nossa miséria”, frase colhida numa enquête feita pelo jornal. A foto lembrava as vitimas da fome africana, realmente chocante!
Na época (anos setentas) os governadores eram nomeados pelo Presidente da República a partir de uma lista tríplice submetida ao SNI (Serviço Nacional de Informação) em Brasília. O escolhido agia como delegado do poder central e do regime militar. O antecessor podia acompanhar a escolha e dar alguns palpites para a nomeação, geralmente beneficiando seu grupo político.
No dia em o que Varadouro n.7 circulou, em fevereiro de 1978, o Governador Geraldo Mesquita, hoje afastado da política, havia convocado a imprensa para anunciar um acontecimento importante. Os jornalistas estavam postados em volta da grande mesa do salão nobre do Palácio Rio Branco quando um assessor apareceu com um exemplar do jornal para o governador. Mesquita interrompeu sua fala, olhou bem a capa, leu em voz alta a manchete e, surpreendentemente, baixou a cabeça e chorou.
Mesquita, é preciso que se diga, não foi propriamente um governador da ditadura militar de 1964. No passado ele participou da criação do Partido Comunista Brasileiro do Acre e sua origem é de homem do interior (Feijó). Portanto ele foi um político com alma e sentimento. Mas o jornal o ajudou enxergar com clareza o conflito que se estabelecera entre seringueiros e fazendeiros do Sul, Leste e Centro-Oeste na época (75/79). Ele acabou assumindo papel histórico na defesa das tradições acreanas.
Na mesma edição o sociólogo Cesare G. Galvan, professor de pós-graduação de Economia no Recife fez apurada análise do Varadouro mostrando seus defeitos e virtudes. O professor visitou o Acre naqueles tempos turbulentos, encontrando no jornal um denso conteúdo que colocou a realidade acreana em debate. As teses de mestrado e publicações especializadas que recorreram e ainda recorrem ao jornal, como fontes de pesquisas, corroboram sua importância.
E já que iniciei esta apresentação com uma pergunta, posso terminar com outra: - o Acre que sofre hoje, como outras capitais em crescimento, uma realidade de violência, narcotráfico, fome e desemprego, acolheria a produção de um jornal parecido com o Varadouro, com repórteres, leitores, políticos, empresários, índios, associações e sindicatos preocupados em encontrar solução para a região?
(texto produzido e publicado, originalmente, em maio de 1998 no jornal o Acre

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