domingo, 9 de janeiro de 2011

Varadouro 19: mentiras e lágrimas

Varadouro 19: mentiras e lágrimas
Por Elson Martins
Impresso numa gráfica de Belém (PA), sem acompanhamento de revisor, a edição apresentou logo na segunda página, reservada à seção de cartas, uma incômoda troca de títulos: “Pau no HP” saiu no lugar de “O patrão mentiu”. O primeiro se refere a uma carta enviada de Salvador (Bahia) metendo o pau nos distribuidores locais do jornal “Hora do Povo” (editado pela tendência de esquerda liberdade e Luta ou simplesmente LIBELU). Chega a acusá-los de cometer “atos agressivos, antidemocráticos e repressivos contra as oposições populares”.
“O patrão mentiu” é o título da segunda carta, escrita por Hercília Zaparoli Siena, mãe do capataz do seringal Nova Empresa, Carlos Sérgio Zaparoli Siena, morto em julho de 1977 juntamente com seu auxiliar, Oswaldo Gondim, dois cavalos e um cachorro numa emboscada montada por seringueiros que ele queria expulsar das terras. O seringueiro Caetano, pai de 18 filhos que havia se queixado até para o governador das ameaças do capataz, sem resultado, comandou o tiroteio fazendo sua própria justiça.
O patrão de Carlos Sérgio, Arquimedes Barbieri, foi ouvido na época pelo Varadouro e procurou eximir-se de culpa. Disse que seu capataz “era um menino revoltado” e que sentiu muito sua morte porque, quando a mãe dele o conheceu falou: “Seu Barbieri, o meu filho Sérgio tem um temperamento exaltado. Pelo amor de Deus, controle ele pra mim”!
Barbieri fazia parte de um grupo de 10 fazendeiros do Sul que adquiriu o seringal Nova Empresa, nas proximidades de Rio Branco e o retalhou em glebas. Assustado com o acontecimento, levou o corpo do capataz para enterrar em Batatais (SP), onde conversou novamente com a senhora Hercília, que, segundo ele teria dito: “Seu Barbieri, eu tenho que agradecer ao senhor. Sei de fonte fidedigna que o senhor não teve culpa nenhuma. Ele tinha mesmo um temperamento exaltado e a gente sempre tinha medo”.
Quando montávamos esta edição em maio de 1980, entretanto, o advogado da família que atuou na acusação dos posseiros (foram todos absolvidos) telefonou para um editor do jornal pedindo que fosse publicada esta carta da mãe de Carlos Sérgio:
“Senhor redator:
Somente agora, após o julgamento dos matadores de meu filho, tomei conhecimento da entrevista que o senhor Arquimedes Barbieri concedeu ao seu periódico “Varadouro”, edição de agosto de 1977.
Assim, me apresso a respondê-la para, com a necessária veemência, refutar inverdades que foram ditas, as quais atribuo à preocupação do senhor Arquimedes em preservar seus interesses econômicos neste estado.
Em verdade, meu filho Carlos Sérgio Zaparoli Siena jamais demonstrou, na sua vida familiar, “temperamento exaltado”, sempre foi um filho dedicado cujas lembranças me são muito caras, e a saudade de intensa dor. Também não traduz verdade integral a sua fala sobre nossa conversa no Cemitério Municipal de Batatais, cidade do interior do Estado de São Paulo onde repousam os restos mortais de Carlos Sérgio. Naquela oportunidade, eu o agradeci pelas providências que tomou ao transladar o meu filho de Rio Branco para Batatais, nada além.
Deixo, pois, muito bem salientado que Carlos Sérgio sempre se mostrou um ótimo filho, um irmão extremado, um amigo dedicado. De temperamento extrovertido, muito alegre e comunicativo. Quando falava do Acre o seu entusiasmo era contagiante, e jamais demonstrou qualquer preocupação que nos fizesse desconfiar do perigo que corria, cujo desenlace foi para a família surpresa absoluta, eis que o senhor Arquimedes só se referia a meu filho com elogios, e não me alertou da realidade.
Por fim, quero dizer que meu marido, meus outros dois filhos e eu morremos um pedaço com a morte prematura do Carlos Sérgio, razão porque deploramos a violência que contra ele se perpetrou. E fundamentados em infindável dor e inafastável saudade, imploramos aos responsáveis pela solução do grave problema da terra no Acre; que se mostrem mais sensíveis resolvendo o litígio, a fim de evitarem outras dores, preservando mães, pais e irmãos de perdas irreparáveis, de dor sem cura, de espera sem fim, de saudade que é morte.
Senhor redator, a publicação desta correspondência é um favor que solicito, pois à mãe que dá vida ao filho, quando perde só resta resguardar a sua memória. Aliás, assim o fazendo, o senhor está restaurando a verdade.
Respeitosamente,
Hercília Zaparoli Siena”.
A dor de dona Hercilia não foi maior que a dor das mães acreanas arrancadas com os filhos de suas moradas tradicionais na floresta para viverem situação de miséria na cidade. Não foi maior que das mães e esposas dos líderes assassinados por discordarem da transformação dos seringais acreanos em pastos para bois. Na matéria de capa desta edição, “Os novos donos do Acre”, Varadouro mostra uma lista dos poderosos parceiros de Arquimedes Barbieri, que infelicitaram a vida de muitas famílias da região utilizando métodos violentos para “limpar” as terras dos ocupantes tradicionais. Para isso instrumentalizaram jovens “cow-boys”como Carlos Sérgio.
Um relatório do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) feito em 1979, registra no Estado 218 latifúndios por dimensão que detêm uma área total de 5,8 milhões de hectares, ou seja, mais de um terço das terras acreanas onde viviam milhares de famílias extrativistas. Muitas foram expulsas por capatazes que espalharam terror na floresta. Se não fosse a reação de seringueiros como seu Caetano, o Acre teria sofrido tragédia maior.

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