domingo, 9 de janeiro de 2011

varadouro 2º

Os velhos jornais no Varadouro
Elson Martins
A impressão das 24 edições do Varadouro foi sempre um parto muito difícil. O primeiro número, que circulou em maio de 1977, para ser rodado teve que recorrer à gráfica do Estado, o antigo Serda, e manter longa conversa de convencimento junto ao diretor José Paz, um pernambucano esclarecido que precisou consultar o então governador Geraldo Mesquita para nos atender. A autorização saiu sob recomendações e ameaça de suspensão.
Aparentemente, nada impediria que o jornal tivesse vida longa nas oficinas do governo, até porque o dono da gráfica (Mesquita), por seu passado e formação ideológica era tido como aliado. Mas o recado desanimador não demorou: “Não vai dar pra continuar tirando o jornal aqui” – desculpou-se José Paz, e até hoje não sabemos por que, já que a edição saiu bem comportada, até..
O fato é que começamos contabilizando prejuízo: o acerto com o Serda incluiu a compra de 300 quilos de chumbo para linotipo no Rio de Janeiro, pagando frete aéreo caríssimo, além das despesas para o serviço extra do linotipista Nilder (já falecido), do paginador e auxiliares de tipografia. Sem contar as resmas de papel para 5 mil exemplares de 20 páginas, tamanho tablóide, e o lanche da rapaziada que teve de madrugar alguns dias até o jornal ficar pronto.
Pelo editorial do número 1, entretanto, dá para perceber que o ânimo da equipe do Varadouro suportaria contrariedades: “Varadouro é um dever de consciência de quem acredita no papel do jornalista”, ao que foi acrescentado: “é um desafio, até certo ponto, incômodo; sabemos que seremos amados e mal-amados, mas ainda achamos que vale a pena assumi-lo, porque acreditamos que o homem acreano e o da Amazônia merecem muito mais que simplesmente o berro do boi”.
E por aí o número 2, que deveria circular em junho, somente saiu na primeira quinzena de julho com atraso de um mês. A explicação está na longa negociação que precisou ser feita do outro lado da Rua João Donato, onde funcionava a gráfica do jornal O Rio Branco de propriedade de Luiz Tourinho, empresário de Porto Velho. O editor José Chalub Leite, aberto às novas idéias, deu uma mãozinha para que seu patrão acolhesse o novo e inquieto nanico da imprensa, mas não evitou um novo impedimento. A via crucis do Varadouro estava apenas começando.
Com a reportagem de capa “O Acre nos jornais velhos – Uma história bem contada”, a segunda edição penetrou mais fundo na alma acreana. A matéria resultou de uma mexida nas prateleiras empoeiradas da Biblioteca Pública e de conversas com pioneiros como Foch Jardim e Zé Leite, surpreendendo ao mostrar como o Estado foi pródigo em jornais no começo do século. Circularam nos tempos felizes da borracha mais de 50 títulos editados sabe-se lá como, mas mas que faziam registro fiel dos acontecimentos da época: desde a elegância da “mademoiselle” Raimunda da Silva ao preço do látex no mercado internacional e as intrigas locais.
Durante a produção das duas primeiras edições e apesar dos problemas que teve de superar, a equipe do “Vara” não parou de crescer. Na primeira reunião de pauta na redação - digo na minha residência na Rua Cel. João Donato 291- participaram três, quatro gatos pingados. Mas para a matéria sobre os jornais velhos já contamos com um mutirão de “repórteres” que entrou em campo procurando fazer o melhor sobre o tema escolhido.
Coloquei aspas na palavra “repórteres” propositadamente, para explicar que, no começo, com experiência em jornalismo existia apenas eu, o Silvio Martinello e o Antônio Marmo, este último um excepcional jornalista que sempre estranhou o clima de nossa redação. Em compensação, o time que foi às ruas saber dos problemas e fazer notícia, eram militantes de primeira: Célia Pedrina, Luis Carvalho, Rosa Maria Carcelen e Terri Aquino (Txai) para começar. Contamos também com o fotógrafo Adalberto Dantas, que mantinha um laboratório no SESC, o imprescindível Abrahim Farhat Neto (nosso Lhe), e o Alberto Furtado, promovido de proprietário da banca de revistas a vendedor de jornal no “pregão” (Olha o Varadouro!).
Daí para frente entrou mais gente, conseguimos uma redação nos fundos do quintal do seu Elizeu - guarda territorial aposentado e pai da Eurenice, militante do DCE da Universidade Federal do Acre - e o Varadouro se tornou algo mais que um jornal: funcionou também como delegacia de policia, posto de assistência social, sede comunitária de lavadeiras, domésticas e estivadores, quartel general do Txai Terri e dos índios Kaxinawá do velho cacique Alfredo Sueiro, dos confins do rio Jordão.
Repercussão no País
Na segunda página da edição 2 dá pra ver a repercussão que o jornal causou. Chegaram à redação cartas de São Paulo, Brasília e, claro, Xapuri, de onde o saudoso Chico Mendes mandava sua força e pedia mais jornais. As cartas continuariam chegando aos montes, de diferentes lugares, e isso tinha uma explicação: a imprensa alternativa funcionava como uma rede distribuindo no país os nanicos e, ainda por cima, trocando matérias e tecendo rasgados elogios. Era uma rede solidária contra o regime militar no Brasil.
Na página 3, o jornal publicou uma entrevista com o prefeito Fernando Inácio recém nomeado por Geraldo Mesquita. Eleição era coisa rara naqueles tempos, todos os prefeitos do Acre vinham nomeados de Brasília depois de terem os nomes submetidos ao crivo dos generais. No caso do Fernandinho, nem precisava, o homem parecia um sacristão saindo da missa; mas o que ele fez bem durante alguns anos foi torrar a paciência dos riobranquinos.
A entrevista com o prefeito-interventor foi trabalhada pelo Antônio Marmo, que veio de São Paulo junto com o Silvio e deu enorme contribuição para a imprensa acreana sem entender porque o pessoal continuava fazendo e gostando do jornalismo tão arriscado que se produzia aqui. Ele acabou cunhando a expressão “aqui é aqui” para explicar o inexplicável. Com estilo primoroso Marmo fez com que o entrevistado parecesse um político disposto a fazer alguma coisa pela cidade.
Depois de passar pelo “Siribolo do Papôco”, indicando que o jornal tinha interesse nas histórias dos bairros, os antigos e os novos, e de destacar o pouco caso que o poder público fazia da saúde, o Vara 2 chegou à página 7 com um assunto de comportamento: “Quem é o pai da Juliana?”. Tratava-se de uma queixa contra a intromissão da televisão nas pacatas conversas entre vizinhos, nas varandas e calçadas. As famílias se trancavam à noite para receber sua dose diária de veneno global cedendo ao modismo, e perdendo as histórias e amizades que marcaram a sociedade acreana.
O perigo era iminente. As famílias chegaram à cidade expulsas do seringal e o que lhes ofereciam funcionava como um canto de sereia atraindo para o buraco da miséria, da prostituição e da violência. A TV ajudava (e ajuda) a desagregar famílias, pulverizar corações e mentes e a impor nova e perversa cultura urbana.
O Varadouro farejava essas coisas e se posicionava contra, até com algum radicalismo, ganhando cada vez mais adeptos. Os que não tinham voz para reclamar da dura vida cotidiana encontravam naquele pequeno bando de malucos coragem para denunciar os abusos e cobrar providência das autoridades. Presos maltratados pela polícia, estivadores explorados no porto, os prostíbulos, a sonegação de impostos e malandragem generalizada e irresponsável no serviço público eram assuntos preferenciais no jornal, que estava apenas começando a fustigar a onça.
O Acre vivia a época do berro do boi e do que este representava de ruim para o estado, ou seja: trapaças, escrituras públicas de imóveis forjadas em cartório, prisões ilegais, expropriação de seringueiros e índios, trabalho escravo, prostituição das meninas egressas dos seringais enquanto “os novos donos do Acre” se aboletavam nas calçadas do antigo Hotel Chuí, no final da tarde, paqueravam as meninas e bebiam do melhor uísque com seus jagunços que espalhavam o terror na área rural. Tudo isso com a conivência de advogados, juízes, políticos influentes e autoridades de segurança.
Muita gente do outro lado (jornalistas, estudantes, religiosos, ativistas políticos, funcionários públicos conscientes), entretanto, defendia que era preciso fazer alguma coisa contra a bonivização do Acre. Só não sabia por onde começar. O Varadouro mostrou o caminho peitando ao mesmo tempo os fazendeiros e o poder econômico, sem falar nos militares. Tudo com muita ousadia e identidade sincera com o Acre e sua gente.

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