Prostituição e outros problemas
made in Acre
Por Elson Martins
Aleluia! Em dezembro de 1977, após uma agoniada perambulação por algumas capitais brasileiras, a equipe do Varadouro conseguiu trazer a impressão do jornal de volta a uma gráfica de Rio Branco. O empresário e político José Abrantes, dono da gráfica “Dois Oceanos”, abriu as portas de sua oficina alimentando entre nós, durante algum tempo, a ilusão de que faríamos um grande projeto editorial.
Houve momento de euforia na redação com a notícia de que a impressão sairia quase de graça. Podíamos acompanhar a edição de perto e, com jeito, introduzir pelo menos mais uma cor na capa, o que dependia apenas do relacionamento com o chefe da oficina e seus auxiliares, o que não representava problema pois a turma do Vara era engajada, solidária e disposta a meter a mão na massa.
O português José Abrantes - quem não o conheceu? - foi sempre muito influente no Acre, até cansar de tudo no inicio dos anos noventa, vender seus bens e partir com uma mala de documentos sigilosos para viver feliz na sua Portugal.
Eu o conheço desde os anos cinqüenta (1958), quando apareceu em Rio Branco como representante de uma firma de remédios do sul do país. A lembrança dessa época é vaga, mas consigo localizá-lo nas imediações do Bar Municipal, restaurado há alguns anos na Praça Cívica. Eu cursava a primeira série do colegial (científico), no Colégio Acreano, junto com Edílson Martins (hoje jornalista, escritor e produtor de documentários para a TV no Rio de Janeiro) e o Odacir Soares (que também fez jornalismo antes de tornar-se deputado e senador por Rondônia). Nós três chegamos a produzir o jornalzinho estudantil “O Selecionado”, bastante atrevido, que se não me engano, chegou a comentar a presença do “português” na praça.
O Abrantes representou uma ameaça às nossas fantasias românticas com a coleguinha de classe Maria Rita Alencar Araripe, - bela, inteligente e rica. Leitor assíduo do poeta Fernando Pessoa – cujos versos e sabe lá quantas coisas bonitas mais sabia de cor – o português era também muito elegante e andou cortejando nossa musa, embora tenha casado depois com a irmã, Maria Amélia.
Passei 17 anos fora do Acre e ao retornar, em 1975, encontrei-o em Rio Branco com enormes poderes. Além da gráfica, possuía uma transportadora e um supermercado que somavam respeitável patrimônio. E construíra a fama de maior articulador político do PMDB. Sustentava ainda, com invejável astúcia, o perfil de um homem de esquerda comprometido com causas populares. Por isso invadimos sua gráfica com o Varadouro.
Mas, meus caros leitores, foi exatamente aí que iniciamos a verdadeira odisséia do jornal das selvas. E explico por quê: a “Dois Oceanos” era uma gráfica razoavelmente bem montada para produzir pequenos impressos, mas precaríssima para imprimir um jornal, mesmo em tamanho tablóide como o nosso.
Em 1977, os extraordinários computadores não haviam chegado ao Acre e a novidade em composição de textos era a Compose IBM, algo melhor que a máquina de escrever elétrica com a qual também não contávamos. Tivemos que recorrer às velhas linotipos para transformar as laudas datilografadas em barrinhas de chumbo, arrumá-las em colunas e então tirar as provas para colar nas páginas que formariam o jornal. Um trabalho artesanal que exigia capricho e paciência.
O passo seguinte era fotolitar as páginas, gravar em chapas de zinco pré-sensibilizadas e partir para a impressão em off-set. Com as chapas prontas para imprimir, porém, nos colocávamos diante de um obstáculo bem maior: a impressora do Abrantes só imprimia uma página por vez, o que exigiu uma ampla reunião da equipe do Varadouro com leitores e simpatizantes para responder à pergunta: “vamos encarar”?
Imaginem se sujeitos como o Abrahim Farhat, o Alberto Furtado e o antropólogo Terri Aquino, que perambulava pela cidade com metade da tribo dos Kaxinauás do Jordão iam responder “não”! A resposta foi: “mãos à obra” e a imediata convocação dos dobradores de papel.
O procedimento se estendeu por várias edições. Primeiro a gráfica cortava o papel no tamanho de uma folha do jornal aberta, correspondendo a um caderno de quatro páginas (duas de cada lado) para a tiragem de 5 mil exemplares. Ou seja, a gráfica preparava 25 mil folhas com uma folga para as falhas de impressão. Ao mesmo tempo e conforme o combinado, preparávamos nossa equipe de dobradores aliciando-a com cafezinho, guaraná ou refresco e pão com manteiga.
Na primeira dobração, encarávamos 25 mil folhas de papel em branco. Com a ajuda do Abrahim apanhávamos o material na gráfica e após dobrar folha por folha ao meio, com precisão, o devolvíamos para a impressão das duas primeiras páginas. Em seguida e ao sinal da gráfica, íamos buscar a mesma pilha de papel para desdobrar as folhas, agora com o cuidado de não mancha-las com a tinta da primeira impressão, devolvendo o material com a parte branca para fora, para a segunda rodada de impressão. O procedimento repetia-se para cada um dos 5 cadernos que completavam as 20 páginas do Varadouro com tiragem de 5 mil exemplares.
Fazendo as contas, a equipe de dobradores formada por jornalistas, moradores da periferia (das associações de bairros), universitários, boêmios e índios, passavam uma semana para dobrar e desdobrar, ao todo, 250 mil folhas, para ter a satisfação de ver o Varadouro nas ruas.
Ninguém recebia um único tostão pela trabalheira, mas todos achavam que valia a pena participar da tarefa. Não foi à toa, portanto, que o Varadouro se impôs com tanto respeito, como experiência honesta e engajada, um registro necessário e fiel de tempos heróicos do jornalismo acreano.
A primeira edição produzida nessas condições - inimagináveis nos dias de hoje - foi a de número 6. Esta é, portanto, uma edição histórica, como outras que se seguiram graças a obstinação, a coragem e o amor à terra das pessoas que participaram de sua elaboração. Para o desembargador Arquilau de Castro Melo, deve ter um significado especial. Repórter do Varadouro à época, foi ele quem fotografou (com todo respeito) a moça da capa, uma bela morena acreana nascida nos seringais e que, sem alternativa, sobrevivia nos prostíbulos do bairro do Papôco. Arquilau escreveu também o texto da matéria que fez a edição esgotar em tempo recorde.
A foto da morena com um crucifixo pendendo sobre os seios completamente nus gerou uma pequena discussão: devíamos colocar ou não uma tarja escondendo os seios? A maioria entendeu que sim, não por moralismo, - já que não existia nada de imoral na foto – mas porque a Polícia Federal andava em nosso encalço procurando um motivo qualquer para impedir a circulação do jornal. Coube a mim, na condição de arte-finalista colocar a tarja com a expressão “Prostituição – Acre”.
Outros títulos abordados na edição foram também carimbados: “Mulheres sem charme”, “Ecologia” e “À margem da vida”. O recurso criou um aspecto de cais de porto com produtos made in Acre para a exportação, formando um conjunto expressivo e denunciador. O resultado foi uma bela capa para um ótimo jornal.
(texto produzido originalmente em fevereiro de 1998, com pequena atualização)
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