domingo, 9 de janeiro de 2011

Varadouro 3º

Varadouro mostra a cara do conflito
Por Elson Martins
O Varadouro número 3 que a Biblioteca da Floresta está disponibilizando em seu site, circulou em agosto de 1977, após enfrentar novas dificuldades com impressão. O empresário Luiz Tourinho, dono do jornal O Rio Branco, concordou em imprimir a edição número 2, mas fechou a cara e a gráfica quando viu o conteúdo da edição. Foi necessário acionar a rede nacional e solidária dos nanicos que nos indicou as oficinas da PAT – Publicações e Assistências Técnicas Ltda de São Paulo como solução. Deu certo: impresso em off-set, o jornal ficou mais limpo e bonito, sem custos adicionais, mesmo incluindo o frete daquela lonjura.
A manchete de capa tratou do tema que virou marca registrada do jornal: conflitos de terra. A matéria “Terra, a briga pra ser dono” ocupou quatro páginas centrais e a edição de 5 mil exemplares esgotou logo. Um detalhe: o logotipo do jornal e a ilustração da capa são xilogravuras do Carlitinho (Francisco Carlos Cavalcanti, hoje pró-reitor da UFAC) que, antes da solução de São Paulo, sugeriu substituir os clichês de Zinco encomendados em Porto Velho por placas de madeira. No processo em off-set, contudo, foram aproveitadas apenas as xilogravuras.
Num dos três quadrinhos montados no sentido vertical, completando a capa, foi anunciada uma entrevista com o pesquisador Agamenon Tavares de Almeida, o qual mandou para o reitor da época, Aulio Gélio, um recado que continua valendo: “A Universidade tem que ser aberta”.
A matéria sobre a briga pela terra foi uma “pauleira” só. Pegou a equipe de surpresa na boca da noite, no fechamento da edição, com a notícia de que os posseiros do seringal Nova Empresa tinham emboscado e morto o capataz Carlos Sérgio Zaparolli Siena e seu auxiliar, Oswaldo Gondim.
Calafrios na turma! Porque o Carlos Sérgio era o cara que o jornalista Antônio Marmo, nosso colaborador entrevistara dias antes; a matéria estava até diagramada na página 3 e todos sabiam que o ousado e perverso capataz corria risco de ser atacado pelos posseiros. Sua entrevista teve que ser deslocada para juntar-se às opiniões do governador Geraldo Mesquita, do bispo Dom Moacyr Grechi, do representante do Incra, do posseiro Caetano, do policial e do patrão do capataz nas páginas centrais.
Carlos Sérgio havia dito na entrevista que nasceu e foi criado no sistema capitalista, e que se mudassem o sistema, ele iria para a Austrália caçar Canguru. Quem o via costumeiramente em frente ao hotel Chuí paquerando as meninas nos fins de tarde, não podia imaginar que aquele jovem loiro, alto, magro, olhos azuis e voz educada, vivia a infernizar a vida das famílias do seringal Nova Empresa nas proximidades de Rio Branco. Mas vivia. O seringal tinha sido retalhado e vendido a um grupo de médios empresários do sul, entre os quais figurava seu patrão Arquimedes Barbieri, um industrial do ramo de tintas em São Paulo. E a função do Capataz era expulsar as famílias que teimavam em permanecer nas terras. Ele chefiava um bando para metralhar criações, queimar barracos e entupir varadouros.
O grupo sulista propôs ceder uma área com lotes demarcados (de 25 hectares cada) para colocar os posseiros dentro, como forma de indenização. Mas a estratégia tinha sido tentada em outras áreas conflitadas e quem aceitou se deu mal. O terreno cedido, imaginem, ficava geralmente num chavascal com difícil acesso, com lotes demarcados na mata bruta; as famílias, após curto tempo, largavam as terras preferindo vim passar dificuldades em Rio Branco.
O seringal Nova Empresa era o conflito mais próximo do Palácio do Governo, mas o governador Geraldo Mesquita tardou admiti-lo, apesar das denúncias apresentadas pelo Contag, Igreja, alguns políticos e pelos próprios seringueiros. O problema é que o governador contava com maus conselheiros na área de segurança. O seu secretário, Coronel José Maria de Araújo, confundia posseiro com jagunço; e o diretor da Polícia Judiciária, João Bernardino de Souza, um esperto advogado paulista vivia forçando acordos de terra dentro da repartição, intimidando as famílias com a presença de policiais e representantes dos fazendeiros.
O agricultor Antônio Caetano de Souza, cearense de 53 anos e pai de 18 filhos, chefiou a emboscada e disparou o primeiro tiro em Carlos Sérgio. Ele disse que cansou de procurar as autoridades pedindo uma solução negociada. Sob sua liderança, os posseiros decidiram agir por conta própria. “Eu atirei seguro para ele não escapar, e se não faço isso ele me matava”, declarou Caetano ao delegado Hilpídio Hilário, que o manteve numa cela do primeiro distrito policial.
A matéria do Varadouro é um documento histórico completo que dá a dimensão dos conflitos, omissões e irresponsabilidade do Acre nos anos 70/80.
A edição está recheada de boas matérias. Uma delas é sobre o Manoel Cantador, um menino que veio na leva dos expulsos da terra para cantar sua tragédia na cidade. Ele cantava a história do pai, vivida no “Seringal do Santo” onde “a mercadoria leva um tempo a faltar/ a borracha mal pesada/ saldo não querem pagar”. Depois que se fixou na cidade, Manoel cresceu e viveu de certa forma, tragédia maior.
Uma matéria pelo menos curiosa é a que recebeu o título de “Procura-se um modelo (acreano)”. O Fernando Garcia, engenheiro em urbanismo que dirigia o Departamento de Extensão Universitária da Ufac (depois fez mestrado na França e, ao retornar, optou pela Universidade da Paraíba), estava preocupadíssimo com o desenvolvimento do Acre, chegando a oferecer ao Varadouro a sugestão de pauta para discutir um modelo.
O jornal publicou a pauta praticamente como foi formulada, forçando o leitor a pensar nela como se fosse um repórter/redator. Fernando reclamou da solução encontrada pela redação, que se justificou dizendo tratar-se da tentativa de jornalismo interativo com os leitores. Talvez os editores tenham abusado no despojamento e experimentação.
Na página 15, sob o título “Bana Split”, saiu uma bronca contra as mudanças no hábito alimentar dos acreanos. O redator critica a predominância do “filé paulista” nos cardápios dos restaurantes da cidade, enquanto sumiam as paçocas e as tapiocas. Parecia um exagero do jornal, mas vá lá! O exagero acontecia também do outro lado, de forma desrespeitosa e burra contra as tradições do Acre.
Um simpósio de História previsto para aquele mês (agosto/77) ia reunir conferencistas importantes como Arthur César Ferreira Reis e Márcio de Souza. O jornal aproveitou para fazer um perfil dos ilustres “simposiastas”, palavra cunhada por um desembargador eufórico. Na seqüência, são publicados textos sobre a situação do professor rural, do marreteiro e outras dificuldades provocadas pelo êxodo da floresta para a cidade e pela migração que chegava do sul.
As cartas, como podem ver, chegavam encorajadoras de toda parte do país, um fato incomum no jornalismo, principalmente do norte, onde os leitores não têm o hábito de escrever para as redações. É claro que massageava o ego da turma do Varadouro. Assim como a publicidade, pequena, mas crescente e fiel, estimulava a turma. Observem que àquela época (há 30 anos), sob tiroteio e fumaça tinha gente da área empresarial mostrando a cara para defender o sentimento da acreanidade no Varadouro. Bons tempos!

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