Varadouro 16: mutirão contra a jagunçada
Por Elson Martins
Quando clareava o dia 2 de setembro de 1979, trezentos seringueiros, ribeirinhos e agricultores sindicalizados que se encontravam a postos no seringal Penápolis, na BR-317, trecho entre Rio Branco e o município amazonense de Boca do Acre entraram em ação. Organizados em dois grupos e armados apenas de terçados e foices, eles partiram para fazer o enfrentamento contra jagunços e peões que infernizavam a vida dos posseiros da área. O jornal Varadouro chamou o empate de “mutirão contra a jagunçada”, em manchete na edição número 16, que a Biblioteca da Floresta disponibiliza agora em seu site.
O jornal tinha um repórter (este redator) acompanhando a história que se passou no sul do Amazonas, nos limites com o Estado do Acre. O fazendeiro paulista Ueze Elias Zarhan adquirira uma terça parte do seringal e procurava expulsar os posseiros assentados ao longo da estrada. Entrou com ação de reintegração de posse na Justiça em Manaus, que por duas vezes mandou pelotão de policiais militares expulsarem as famílias. Mas o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e a Igreja apoiaram os posseiros que permaneceram nas terras. Foi então que Ueze Zarhan tomou medida mais radical e ilegal: contratou 40 peões para desmatar as posses e um grupo de jagunços para assegurar o desmatamento e expulsar as famílias
“Eu ia plantar uns pés de laranja em volta do meu barraco quando apareceram cinco jagunços dizendo que o sujeito que plantasse um só pé de planta naquelas terras, eles arrancavam a cabeça dele com uma bala”, declarou o posseiro Antônio Thomaz referindo-se à violência que passaram a sofrer naqueles tempos.
A resistência foi discutida numa reunião na igreja Nossa Senhora da Conceição, no segundo distrito de Rio Branco, por representantes dos oito sindicatos de trabalhadores rurais criados na década de 1970 pela Contag. Na ocasião, após ouvirem muitos relatos como o do posseiro Thomaz, os seringueiros sindicalistas combinaram o mutirão contra os jagunços.
Do acampamento montado a dois quilômetros da concentração dos posseiros, os jagunços os avistaram e fugiram pela mata procurando socorro junto a um fazendeiro da vizinhança. Já os 40 peões e o apontador Zezinho, encarregado dos alojamentos, foram detidos e submetidos a um “tribunal popular” organizado pelos sindicalistas. Um a um foram ouvidos e em seguida liberados com a recomendação para irem embora com seus pertences.
O empate virou marco histórico das lutas socioambientais do Acre, e encorajou os seringueiros de todo o Estado para uma briga maior com os fazendeiros, para impedir o desmatamento dos seringais e a expulsão das famílias que ocupavam as colocações de seringa e também estavam ameaçadas. Wilson Pinheiro, então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia (AC) e principal liderança do movimento, mandou recado para os fazendeiros: a partir daquele momento, os sindicalistas não iriam permitir que derrubassem árvore nenhuma na região.
O recado foi entendido pela UDR, a entidade nacional dos fazendeiros, que considerou uma provocação inaceitável e deu o troco: durante reunião promovida alguns meses depois em Xapuri, pela Sudhevea, com a participação de fazendeiros, o ex-seringalista Guilherme Lopes na função de secretário municipal declarou: “Vão surgir muitas viúvas no Acre”.
De fato, no ano de 1980 os fazendeiros tornaram viúvas as mulheres de Ivair Higino, José Ribeiro, Wilson Pinheiro e Chico Mendes, além de outras cujos maridos permaneceram desconhecidos da mídia, ou foram assassinados sem que as verdadeiras causas constassem dos registros policiais. Mas o movimento dos seringueiros se fortaleceu e foi fundamental para desenvolver o Acre com suas tradições amazônicas, sustentando o modo de vida peculiar de seu povo.
A edição 16 destaca também o surgimento nos meios políticos da Frente Popular: “um movimento contra a ditadura militar”, e publica nas páginas 3, 4 e 5 uma entrevista com o ex-padre acreano Manoel Pacífico da Costa, que foi um dos coordenadores do movimento. Na página 6, o jornal fala das conspirações e cochichos que eram então comuns na Universidade Federal do Acre. O reitor Aulio Gélio Alves de Souza, procurando agradar os generais de Brasília, iniciara naquele ano (1979) a cassação de professores considerados de esquerda. O reitor explicava que agia sob ordens do SNI (Serviço Nacional de Informações).
O jornal publica ainda uma entrevista coletiva com alguns estudiosos e pesquisadores da Amazônia que visitavam o Acre na época, interessados nas coisas que aconteciam por aqui; dá um puxão de orelha na Funai (Fundação Nacional do Índio) porque a instituição começava a atrapalhar-se com a troca de nomes para dirigir a delegacia regional; e publica duas páginas sob a exploração de ouro nos garimpos de Rondônia.
Fechando a edição, na contracapa foi publicado o poema “Os olhos verdes que eu vi”, uma colaboração do sociólogo baiano Antônio Dias que visitava o Acre colhendo informações para uma matéria do Caderno CEAS, publicação mensal do Centro de Estudos e Ação Social, que tem sede em Salvador.
Antônio Dias percorreu a estrada BR-317 de Rio Branco a Assis Brasil (na dupla fronteira do Acre com a Bolívia e o Peru) conversando nas residências de seringueiros e posseiros nas margens da rodovia, ainda sem asfalto. Ao parar num boteco para tomar água, encontrou uma jovem mãe com o filho doente no colo, aguardando um rezador. A criança loura e de olhos azuis mostrava-se abatida e triste. Ao retornar, no dia seguinte, o sociólogo parou no mesmo local para ter notícias dela. Informaram que tinha morrido.
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