domingo, 9 de janeiro de 2011

Nº 12Varadouro com vara curta

Varadouro com vara curta
Elson Martins
A quem serve a justiça acreana? A indagação, estendida em letras maiúsculas encimando uma pilha de velhos processos judiciais, foi manchete de capa da edição do jornal Varadouro que circulou em setembro de 1978 em Rio Branco e outras capitais do país.  Perigosamente, o jornal cutucou a onça com vara curta.
A matéria era uma longa entrevista com o advogado Pedro Marques da Cunha Neto, da Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura), e ocupou três páginas com revelações estarrecedoras. Se ainda hoje, provocar a justiça representa risco para os jornalistas, porque juizes e desembargadores se consideram intocáveis, imaginem nos anos 70, em pleno regime militar, quando em princípio todo cidadão que ousava criticar os poderes constituídos era suspeito de subversão!
O entrevistado do Varadouro, entretanto, era um advogado experiente e, sobretudo, cearense valente e ousado que se formou em direito aos 50 anos de idade depois de cansar de ser caminhoneiro no trecho Rio-Bahia. Em 1974, ele veio para o Acre fazer um concurso para juiz, entretanto, nem fez a prova, pois, antecipadamente ficou conhecendo quem seriam os três primeiros colocados. Vai daí, decidiu permanecer no Estado como advogado da Contag, defendendo os seringueiros e posseiros que estavam sendo expulsos dos seringais pelos fazendeiros, grileiros e policiais militares... mais uma mãozinha da justiça.
Pedro Marques cita exemplos de omissão, incompetência e ilegalidades que facilitavam a expulsão e expropriação das famílias da floresta. Mas sua ousadia quase lhe custou a carteira de advogado. Membros da justiça pediram que fosse impedido de exercer a profissão no Estado, o que não  se confirmou por obra e graça de outro advogado experiente, seu amigo Océlio Medeiros, que veio de Brasília para defendê-lo.
Decorridos 30 anos de sua publicação, a entrevista não envelheceu de todo, principalmente, quando descreve a justiça como um poder das elites, mais sensível aos pleitos do poder econômico que aos direitos inalienáveis do cidadão comum. Logo na abertura da entrevista Pedro Marques declara:
“Costuma-se dizer que existem três poderes independentes, mas esses não o são, não foram e nunca serão. Há sempre a interferência de um outro poder que se chama poder econômico. O poder judiciário é propositadamente emperrado, não porque queira, mas porque há um propósito nisso. Não interessa ao industrial, ao banqueiro, ao comerciante que a justiça funcione. Isso não interessaria nunca, principalmente no campo do Direito Civil”.
O sistema não deixa a justiça funcionar, prossegue o advogado citando um exemplo de sua época:
“A revolução de 1964 mexeu em tudo, cassou políticos simplesmente porque discursavam, cassou gente de todo o jeito, mas o poder judiciário ficou praticamente intocável. Por quê? Porque ele é do sistema sempre, qualquer que seja o sistema, ele se adapta”.
Com outra matéria polêmica, Fé em Deus e pé na Terra, a edição numero 12 do Varadouro instiga a classe política. Afinal, 1978 foi um ano de eleições e a Prelazia do Acre e Purus preparara uma cartilha para ensinar o povo de Deus a votar. A prelazia contava com 500 grupos de evangelização espalhados pela periferia da capital, nas sedes dos municípios, ao longo dos rios e seringais. Cada um desses grupos possuía uma média de 10 pessoas, ou seja, em conjunto poderiam eleger até quatro deputados.
A cartilha continua atualíssima, mas os grupos eclesiais de base se desfizeram por decisão emanada do Vaticano, que via chifres e rabinho na Teologia da Libertação adotada pela igreja do Acre.
Ainda no campo político, Varadouro recorreu a uma sessão de humor na última página para tirar sarro de alguns candidatos. Um deles era o ex-governador Francisco Wanderley Dantas, o Dantinha ou, segundo Varadouro “governador dos bois” que queria ser senador. Valorizando seus cabos eleitorais, o candidato mandou fazer carteirinhas com fotos dos ditos cujos. E Varadouro, aproveitando a deixa, ofereceu um modelo com a foto de um boi e os dizeres:
“Fica o Sr. Boi constituído Cabo Eleitortal para com dedicação, amor e entusiasmo, ajudar na eleição do candidato Dantas – Senador do Acre”. Claro, ele se deu mal nas urnas da floresta.

Varadouro 13: rasteira e choro

Varadouro 13: rasteira e choro
Elson Martins
Estava findando o ano de 1978. Nas eleições de novembro, a ARENA, partido de sustentação política do regime militar pressionou para que o Tribunal Regional fizesse recontagem de votos garantindo a eleição do xapuriense Jorge Kalume para a única vaga do Senado em disputa. O deputado Alberto Zaire, do MDB, também xapuriense que tinha sido anunciado como eleito, desmoronou após a recontagem de uma urna da 3ª Zona Eleitoral de Sena Madureira.
O Varadouro colocou maliciosa manchete na capa da edição de dezembro: “MDB ganha, mas não leva!” – ilustrada com uma foto (de minha autoria) em que Zaire aparece fiscalizando a apuração em Rio Branco. E na página 3, destinada aos temas políticos, publicou a dança dos números com os passos desajeitados de importantes membros do Judiciário.
O estridente desembargador e corregedor eleitoral Jorge Araken Faria da Silva (hoje aposentado e calmo), numa sessão extraordinária do Tribunal Regional Eleitoral “tascou” com seu vozeirão: “Os mapas do município (Sena Madureira) são eivados de erros”, e  sugeriu a abertura de inquérito para responsabilizar “criminal e administrativamente” a Junta Apuradora presidida pela juíza (hoje desembargadora) Eva Evangelista de Souza.
O Varadouro 13 prossegue: “O fato é que surgiram um, dois, três, quatro, cinco resultados da eleição para o Senado, chegando-se ao cúmulo de não coincidirem no final, na conferência dos mapas e boletins os totais de votantes para o Senado, Câmara Federal e Assembléia Legislativa, ou seja, não apareceram 200 votos. Uma quantia significativa, considerando que a pretensa vitória da ARENA foi de apenas 57 votos. Com razão, o MDB anunciou que iria pedir a anulação das eleições no Acre porque, segundo Alberto Zaire, ‘o TRE não tem mais condições de oferecer resultados verdadeiros”.
Eva Evangelista de Souza caiu em prantos. Mas, sua dor não chegava aos pés da dor dos perseguidos pelo governo militar e dos que viam desmoronar, mais uma vez, as expectativas de se garantir a democracia e a lisura eleitoral. Só para lembrar: em 1978, os governadores ainda eram nomeados pelo Presidente da República, um terço dos senadores eram “biônicos” (nomeados) e apenas dois partidos (Arena e MDB) disputavam eleições, digamos, “eivadas de erros”.
Mas o pessoal do Varadouro tinha esperanças e chamou atenção para um fato que poderia ter passado despercebido para a história: um terceiro candidato ao Senado, o ex-governador Francisco Wanderley Dantas, tivera votação pífia. E o jornal registrou:
“No meio de tantas dúvidas e perplexidades que envolveram as últimas eleições, uma coisa é certa: um dos grandes derrotados foi o ex-governador Francisco Wanderley Dantas que abriu as ‘porteiras do Acre’ para os compradores de terras”.
E lá está nas páginas centrais da edição, um exemplo do que fazia o pessoal do Varadouro manter o otimismo: 63 seringueiros do alto Iaco, representando mil famílias que viviam tradicionalmente nos seringais Guanabara, Icuriã e São Francisco enfrentaram os 126 proprietários paranaenses da Coapai (Cooperativa Agropecuária do Alto Iaco) que tiveram de repensar seu projeto e acabaram desistindo do mesmo. Isso depois de um aplaudido encontro na Universidade Federal do Acre em que os empresários apresentaram a proposta  para as autoridades, a classe política e a mídia, entre eles os fraudadores de eleições.
Bom proveito da edição n. 13 do Varadouro, disponibilizada em PDF neste site e podendo ser lida e copiada a gosto.

Varadouro 14: cuidado com a “onça”!

Varadouro 14: cuidado com a “onça”!
Elson Martins

Em 1979 a ditadura militar ainda funcionava a plenos pulmões no País. No Acre, o governador nomeado pelo governo federal, Geraldo Mesquita (1975/1979), conseguira através de sua amizade com o general Geisel fazer o sucessor (também “biônico”) Joaquim Macedo, ex-gerente de seringal em Brasiléia. As opções políticas na época eram tão ruins que o Varadouro acolheu a indicação como boa promessa.
Não que o jornal tivesse algum rabo preso com o governo, mas o barão Mesquita tinha sinalizado que o Acre não devia virar pasto como Rondônia, e Macedo tinha uma caída pelo extrativismo. Outra coisa que o recomendava era o cunhado Elias Mansour Simão Filho, seu Chefe do Gabinete Civil que figurava na lista montada pelo general Garrastazu Médice (um dos mais duros do regime) com os nomes de 197 comunistas infiltrados na administração pública brasileira.
Nossa relação com Elias era afável e de quase cumplicidade. Isso no começo, pois no meio do mandato de Joaquim Macedo (1979/1982), este recebera até recomendação do médico para não ler nossas provocações na imprensa, do contrário, seria difícil controlar sua pressão com remédios. No jornal diário A Gazeta do Acre, que após fracassar sob o comando de um grupo de Porto Velho caiu nas mãos da turma do Varadouro (que parou de circular em 1981) - a corda ficou esticada com o governo. Sobrevivemos a duras penas com a ajuda do empresário Wilson Barbosa, que monopolizava o abastecimento de carne na capital.
Na Gazeta, a gente só não podia reclamar do preço da carne, quanto ao resto... Vendíamos cerca de 3.500 jornais diariamente e conseguimos fazer bom jornalismo com uma equipe esforçada e competente. O repórter Arquilau de Castro Melo, hoje desembargador - produzia quatro matérias polêmicas por dia.
Bom, mas estou falando da edição 14 do Varadouro: dois anos antes do jornal bater as botas, estávamos peregrinando pelas gráficas do país porque em Rio Branco não tinha boca para imprimi-lo. Esta edição foi impressa em São Paulo nas oficinas as Empresa Jornalística AFA Ltda, na Avenida Liberdade, e para isso contamos com a solidariedade de pessoas e da imprensa nanica espalhada pelo país para encontrar a solução à distância.
Da mesma forma o número de colaboradores aumentava na redação do jornal localizada na Travessa Epaminondas Martins 141, no bairro do Bosque, precisamente uma ruela que inicia na cabeceira da ladeira da Maternidade na Avenida Getúlio Vargas. O prédio ainda está lá, quase do mesmo jeito como seu Elizeu nos alugou consciente de que teria dificuldades de receber a mensalidade. A Eurenice, filha dele, na época universitária e hoje professora doutora da Universidade Federal do Acre era nossa principal avalista.
Entre os novos colaboradores estavam Paulinho (fotografia), Serginho e José Grilo (diagramação), Raul Velásquez (ilustração), Luis Antônio (revisão) e os redatores Antônio Marmo, Mary Allegretti, Toinho Alves, Ray Cunha, Maria Auxiliadora Guimarães,  Cafieiro, Nellie, Vicent Carelli, Raimundo Nonato (Brasiléia), João Batista e Renata. Alguns desses nomes ajudaram no fechamento da edição em São Paulo.
A capa do número 14 veio com quatro manchetes de peso igual: Acre corre sérios riscos, Alucinações do Santo Daime, Mentiras sobre o Índio e Roteiro da prostituição. Essa sobre os riscos partiu do BDF (hoje Ibama). O órgão subordinado ao Ministério da Agricultura propôs “contratos de risco” com empresas nacionais e estrangeiras para exploração da madeira da Amazônia. Já pensou?  O Toinho que fez uma ilustração para a última página já imaginou passarinhos piando em inglês: Peaw! Peaw!
Mas a matéria mais polêmica na região foi sobre as “mentiras” que o antropólogo Terri Aquino descobriu num relatório da Agência do Banco da Amazônia em Tarauacá. Ao todo foram seis mentiras que o Terri teve que desmentir. A primeira dizia que não existiam reservas indígenas em Tarauacá; a segunda dizia que os índios sempre conviveram pacificamente com os seringalistas; a terceira que os índios recebem apoio dos patrões seringalistas; a quarta que os filhos dos índios estavam nas escolas... E por aí vai.
Após a publicação do relatório o Txai Terri viveu em apuros na região do Juruá, chegando a ser perseguido rios acima e abaixo por um destacamento da Polícia Militar. Chegou-se a anunciar que a “onça” tinha comido o antropólogo, e teve quem viu o corpo (ou que teria restado dele) ser desembarcado envolto num lençol branco, de um aviãozinho fretado pelo governo. Era boato. Dias depois Terri reapareceu são e salvo pelas bandas de Cruzeiro do Sul. De qualquer forma, o relatório e a repercussão de sua divulgação deixaram claro que o passado do Banco da Amazônia o condena.
Nessa edição tem ainda uma matéria importante sobre posseiros urbanos, um problema que tem origem na expulsão (pelos fazendeiros) das famílias extrativistas dos seringais; e uma carta inédita do seringueiro Rubem Rebouça de Oliveira ao Presidente da República. A carta foi recolhida pela antropóloga Mary Allegretti no seringal Alagoas, no alto rio Tarauacá em maio de 1978. O curioso é que para o Rebouça, o presidente da República ainda era o saudoso Getúlio Vargas, morto em 1954.
Não tem importância: o que ele mandava dizer na carta servia para o presidente de 1978, o general Ernesto Geisel: “Presidente da Nação, o sr. está de costas para o Acre”. Não sei informar se o general a recebeu, muito menos se Getúlio Vargas, onde quer que estivesse pôde ficar de frente para o bravo seringueiro.

Varadouro 15 e o Partido de Massa

Varadouro 15 e o Partido de Massa
Por Elson Martins
A edição 15 do Varadouro circulou em junho de 1979, num começo de verão (estiagem) acreano muito tenso. A corda estava esticada entre os seringueiros organizados e sindicalizados pela Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), e os pecuaristas chegados do sul, que ameaçavam a floresta e seus habitantes tradicionais.
Naquele ano, após o mutirão contra a jagunçada realizado em Boca do Acre, em setembro, com a presença de 300 seringueiros, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, Wilson Pinheiro, anunciaria que não iria mais permitir derrubadas no Estado. A declaração foi como uma sentença de morte: em julho de 1980, ele foi assassinado na sede do sindicato por dois pistoleiros que agiram a mando dos fazendeiros.
A capa do Varadouro, que mostra um jovem em traje de caçada, com espingarda em punho e outros paramentos, expressava a confiança dos seringueiros em sua organização sindical. A foto foi oferecida pela fotógrafa carioca Lena Trindade, que visitou o Acre registrando a luta dos trabalhadores acreanos naqueles tempos difíceis.
De certa forma, a foto dialogava também com a manchete principal: “Vem aí o partido de massa. Quem se habilita?”
Mas, ainda não se falava na criação do PT (Partido dos Trabalhadores). O partido de massa poderia ser o velho PTB de Getúlio Vargas, ou o MDB de Ulysses Guimarães, ou ainda o PS (Partido Socialista), segundo uma Frente Popular organizada às pressas para as eleições de 1978 e que não conseguira avançar sob a liderança do cruzeirense Aluízio Bezerra, de práticas políticas questionáveis.
O modelo partidário (de massa) tinha sido desenhado pelo ex-ministro do Trabalho, Almino Afonso, com os seguintes pressupostos:
“1) Deve ser um partido popular, mas não um estrito partido de classe, um partido operário. O partido representará os assalariados, incluindo a classe operária, os empregados do comércio e serviços, os camponeses e a classe média profissionalizada (advogados, engenheiros, arquitetos, jornalistas), cujas relações de trabalho são crescentemente assalariadas;
2) Deve ser um partido comprometido com um projeto nacional, com ampliação do mercado interno e distribuição de renda; modificação do perfil da produção ou o modelo para adequá-lo às necessidades internas e não à exportação; e multiplicação de empregos;
3) Deve ter a democratização como um dado permanente de sua plataforma política e não como uma postura meramente tática”...
O partido de massa acabou sendo mesmo o Partido dos Trabalhadores (PT) criado em 1980 e que ignorou a efêmera Frente Popular de 1978, orientada por Aluizio Bezerra e outros caciques da esquerda peemedebista. Estes deixaram escapar a chance de desenvolver o Acre durante o governo Nabor Júnior (1982 -1986) que preferiu “apelegar” lideranças rurais forjadas na luta contra os fazendeiros, excluindo-os do processo político.
O Varadouro 15 deu destaque também para a entrevista com o médico e professor amazonense Marcus Barros, que colocou a mão na ferida desnudando a medicina mercantilista que predominava (e por certo predomina, ainda) na Amazônia. A entrevista, feita há 20 anos, em muitos pontos se revela atual.
E a exemplo do que vinha acontecendo em outros estados, os acreanos se manifestaram contra a entrega da Amazônia às multinacionais. O jornal publicou trechos da Carta Aberta em Defesa do Acre e da Amazônia lançada pelo Movimento em Defesa do Meio Ambiente do Acre.
Finalmente, a seção de Cartas (na segunda página) que sempre apresentou novidades, nesta edição abre com a com a mensagem de Vladimir Pomar, cujo endereço postal era  um presídio de São Paulo. Nascido em Belém em 1936, Vladimir tinha na época 43 anos e era considerado inimigo da ditadura militar que governava o país.
Militante desde 1949, ajudou a fundar o PC do B em 1962. Preso no regime militar atuou clandestinamente durante a década de 70, até a extinção do AI-5 em 1978 por Ernesto Geisel. Colocado em liberdade, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (1980) e integrou a executiva nacional do PT (1984-1990). É autor de diversos livros e estudos sobre a China, a história do Brasil e da esquerda brasileira, entre eles o caso de Araguaia.
Publicar sua carta naqueles tempos não deixava de ser uma provocação ao regime militar. Mas o Varadouro corria o risco, consciente e corajosamente.

Varadouro 16: mutirão contra a jagunçada

Varadouro 16: mutirão contra a jagunçada
Por Elson Martins
Quando clareava o dia 2 de setembro de 1979, trezentos seringueiros, ribeirinhos e agricultores sindicalizados que se encontravam a postos no seringal Penápolis, na BR-317, trecho entre Rio Branco e o município amazonense de Boca do Acre entraram em ação. Organizados em dois grupos e armados apenas de terçados e foices, eles partiram para fazer o enfrentamento contra jagunços e peões que infernizavam a vida dos posseiros da área. O jornal Varadouro chamou o empate de “mutirão contra a jagunçada”, em manchete na edição número 16, que a Biblioteca da Floresta disponibiliza agora em seu site.
O jornal tinha um repórter (este redator) acompanhando a história que se passou no sul do Amazonas, nos limites com o Estado do Acre. O fazendeiro paulista Ueze Elias Zarhan adquirira uma terça parte do seringal e procurava expulsar os posseiros assentados ao longo da estrada. Entrou com ação de reintegração de posse na Justiça em Manaus, que por duas vezes mandou pelotão de policiais militares expulsarem as famílias. Mas o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e a Igreja apoiaram os posseiros que permaneceram nas terras. Foi então que Ueze Zarhan tomou medida mais radical e ilegal: contratou 40 peões para desmatar as posses e um grupo de jagunços para assegurar o desmatamento e expulsar as famílias
“Eu ia plantar uns pés de laranja em volta do meu barraco quando apareceram cinco jagunços dizendo que o sujeito que plantasse um só pé de planta naquelas terras, eles arrancavam a cabeça dele com uma bala”, declarou o posseiro Antônio Thomaz referindo-se à violência que passaram a sofrer naqueles tempos.
A resistência foi discutida numa reunião na igreja Nossa Senhora da Conceição, no segundo distrito de Rio Branco, por representantes dos oito sindicatos de trabalhadores rurais criados na década de 1970 pela Contag. Na ocasião, após ouvirem muitos relatos como o do posseiro Thomaz, os seringueiros sindicalistas combinaram o mutirão contra os jagunços.
Do acampamento montado a dois quilômetros da concentração dos posseiros, os jagunços os avistaram e fugiram pela mata procurando socorro junto a um fazendeiro da vizinhança. Já os 40 peões e o apontador Zezinho, encarregado dos alojamentos, foram detidos e submetidos a um “tribunal popular” organizado pelos sindicalistas. Um a um foram ouvidos e em seguida liberados com a recomendação para irem embora com seus pertences.
O empate virou marco histórico das lutas socioambientais do Acre, e encorajou os seringueiros de todo o Estado para uma briga maior com os fazendeiros, para impedir o desmatamento dos seringais e a expulsão das famílias que ocupavam as colocações de seringa e também estavam ameaçadas. Wilson Pinheiro, então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia (AC) e principal liderança do movimento, mandou recado para os fazendeiros: a partir daquele momento, os sindicalistas não iriam permitir que derrubassem árvore nenhuma na região.
O recado foi entendido pela UDR, a entidade nacional dos fazendeiros, que considerou uma provocação inaceitável e deu o troco: durante reunião promovida alguns meses depois em Xapuri, pela Sudhevea, com a participação de fazendeiros, o ex-seringalista Guilherme Lopes na função de secretário municipal declarou: “Vão surgir muitas viúvas no Acre”.
De fato, no ano de 1980 os fazendeiros tornaram viúvas as mulheres de Ivair Higino, José Ribeiro, Wilson Pinheiro e Chico Mendes, além de outras cujos maridos permaneceram desconhecidos da mídia, ou foram assassinados sem que as verdadeiras causas constassem dos registros policiais. Mas o movimento dos seringueiros se fortaleceu e foi fundamental para desenvolver o Acre com suas tradições amazônicas, sustentando o modo de vida peculiar de seu povo.
A edição 16 destaca também o surgimento nos meios políticos da Frente Popular: “um movimento contra a ditadura militar”, e publica nas páginas 3, 4 e 5 uma entrevista com o ex-padre acreano Manoel Pacífico da Costa, que foi um dos coordenadores do movimento. Na página 6, o jornal fala das conspirações e cochichos que eram então comuns na Universidade Federal do Acre. O reitor Aulio Gélio Alves de Souza, procurando agradar os generais de Brasília, iniciara naquele ano (1979) a cassação de professores considerados de esquerda. O reitor explicava que agia sob ordens do SNI (Serviço Nacional de Informações).
O jornal publica ainda uma entrevista coletiva com alguns estudiosos e pesquisadores da Amazônia que visitavam o Acre na época, interessados nas coisas que aconteciam por aqui; dá um puxão de orelha na Funai (Fundação Nacional do Índio) porque a instituição começava a atrapalhar-se com a troca de nomes para dirigir a delegacia regional; e publica duas páginas sob a exploração de ouro nos garimpos de Rondônia.
Fechando a edição, na contracapa foi publicado o poema “Os olhos verdes que eu vi”, uma colaboração do sociólogo baiano Antônio Dias que visitava o Acre colhendo informações para uma matéria do Caderno CEAS, publicação mensal do Centro  de Estudos e Ação Social, que tem sede em Salvador.
Antônio Dias percorreu a estrada BR-317 de Rio Branco a Assis Brasil (na dupla fronteira do Acre com a Bolívia e o Peru) conversando nas residências de seringueiros e posseiros nas margens da rodovia, ainda sem asfalto. Ao parar num boteco para tomar água, encontrou uma jovem mãe com o filho doente no colo, aguardando um rezador. A criança loura e de olhos azuis mostrava-se abatida e triste. Ao retornar, no dia seguinte, o sociólogo parou no mesmo local para ter notícias dela. Informaram que tinha morrido.

Varadouro 17 Peregrinações do Varadouro

Peregrinações do Varadouro
por Elson Martins
Em dezembro de 1979, após imprimir algumas edições na gráfica Dois Oceanos, em Rio Branco, de propriedade do empresário português Carlos Abrantes, a equipe do Varadouro teve que peregrinar novamente em outros estados para imprimir a edição 17. Antes tinha recorrido a Manaus, Brasília e São Paulo. Desta vez, a solução foi encontrada na Neográfica Editora Ltda, localizada à Rua Gaspar Viana, 773, em Belém do Pará.
Em todas as situações em que precisou procurar gráficas em outros estados - porque os podres poderes locais da época (1977 a 1981), incomodados, torciam pelo desaparecimento do jornal - foi fundamental o apoio de periódicos que formavam a rede de imprensa alternativa do país. No eixo Rio - São Paulo, por exemplo, o semanário “Pasquim” comportou-se como grande parceiro. Através de sua editora de livros, a Codecri, mandou para Rio Branco exemplares de seus lançamentos, autorizando que o dinheiro da venda ficasse com o Varadouro.
Em São Paulo, o jornal “Movimento” também deu uma mãozinha divulgando, através de seu pessoal, o alternativo acreano na capital paulista. Em capitais como Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Fortaleza e Belém, entre outras, tinha sempre alguém ligado a publicações alternativas locais cuidando da distribuição do Varadouro nas universidades e em bancas visitadas por estudantes e militantes. Cidades como Belo Horizonte, Brasília e São Paulo vendiam até 300 exemplares de cada edição. Em Belém, o jornal “Resistência”, capitaneado pelo jornalista Paulo Maklouf, facilitava a vida do alternativo acreano.
Graças a essa rede solidária, naqueles anos de chumbo, o Varadouro foi notícia várias vezes na mídia nacional. E mereceu carta e anúncio no “Pasquim”, assinados pelo genial cartunista Henfil. Também o “Jornal do Brasil”, em reportagem de página inteira sobre a imprensa alternativa brasileira, colocou o nanico acreano em destaque, reconhecendo a linguagem limpa, honesta e corajosa.
Bom, esta edição 17, que está sendo disponibilizada em PDF no site da Biblioteca da Floresta, podendo ser copiada e difundida, contém uma amostragem desse jornalismo despojado, independente e comprometido com os seringueiros, ribeirinhos, índios e posseiros que empreenderam as lutas socioambientais no Acre, impedindo que ocorresse no Estado a devastação amazônica financiada pelo então governo militar.
O destaque da edição são as matérias Operação Pega Fazendeiro I e Operação Pega Fazendeiro II, nas quais são descritos, com clareza, dois conflitos entre fazendeiros e seringueiros ilustrativos da violência perpetrada contra os povos da floresta na época. A Operação I aconteceu nos seringais Guanabara e Icuriã, nas cabeceiras do rio Iaco, no município de Sena Madureira, onde mais de 100 seringueiros aflitos precisaram agir contra uma cooperativa de empresários do Sul que queria passar com motosserra sobre as suas colocações de seringa; na Operação II, no seringal Nova Empresa, nas proximidades de Rio Branco, os posseiros acabaram matando um capataz e seu auxiliar, tendo que passar, depois, maus momentos nas mãos da Polícia e da Justiça.
As 24 edições do Varadouro que formam a coleção completa, aos poucos disponibilizada neste site, geraram e continuam gerando teses e dissertações acadêmicas, deixando sua marca na história acreana. É exemplo de jornalismo engajado na luta dos povos da floresta, em defesa da vida humana e do seu meio ambiente amazônico.
A capa da edição 17 expressa a tendência, naqueles tempos, de substituir o homem pelo boi na floresta acreana. É a reprodução de um quadro do seringueiro artista plástico Hélio Melo - autodidata primitivo e surrealista, - que pintou com traços definitivos a crueldade e burrice dos invasores que agiam em nome de um progresso absurdo.

Varadouro 18: Violência no Acre

Varadouro 18: Violência no Acre
por Elson Martins
Em março de 1980, portanto há 30 anos, os jornalistas que faziam o jornal alternativo Varadouro já percebiam e anunciavam: “A violência está aumentando no Acre”. A frase virou título de capa da edição número18, e a matéria ocupou as duas páginas centrais (12 e 13). A abertura sobre o tema tem cara de editorial, como se pode ver neste trecho:
“À véspera do carnaval, três jornalistas aguardavam na sala do diretor de Polícia Judiciária, Américo Carneiro Paes, uma entrevista com o secretário de Segurança Pública que ia anunciar a proibição da moda topless. Encontravam-se na sala, um capitão da PM que aparentemente tinha audiência marcada com o secretário, um senhor idoso e forte com ares de carcereiro e um jovem de cor, de seus 20 anos, que estava sentado numa cadeira com as mãos postas entre as pernas e a cabeça abaixada”.
“O diretor de polícia, Américo Paes, um tipo magro e agitado que age como se tivesse um acúmulo exagerado de serviço sobre a mesa, folheava um grosso volume contendo o Código Penal e instruía o sujeito com cara de carcereiro sobre o que fazer: “Aplica este artigo aqui e este aqui. Peraí! - deixa eu escrever. Combina este com este e ouve quatro testemunhas. Não precisa que tenham visto a cena, pois essas coisas nunca se vê. Basta que tenham sabido da família, da vizinha, pelo rádio, televisão ou pelo escambau. Aproveita e identifica logo esse camarada criminalmente”.
Quando o carcereiro saiu com sua presa, o diretor virou-se para os jornalistas e declarou: “Com tanta mulher boa no Acre esse sujeito vai comer uma menina de três anos! Por isso que vocês criticam a Polícia: num caso desses o cara tem que levar porrada mesmo!” Na seqüência, o capitão da PM defendeu o ponto de vista de que os policiais não conseguem agir segundo as leis que asseguram defesa ao acusado, porque “há um sentimento de justiça próprio, mais forte, que fica por conta do temperamento de cada um”.
“A partir daquelas declarações, os jornalistas ficaram mais convencidos do espírito de arbitrariedade que orienta as ações das mais responsáveis autoridades da segurança pública no Estado, e de como estas, de um modo geral, revelam-se incompetentes para a função que exercem”.
Ainda na matéria sobre violência, o jornal cita práticas de tortura que eram comuns nas delegacias do interior do Estado. Em Brasiléia, um delegado de polícia adotou métodos originalíssimos, obrigando um grupo de pescadores a “rastejar como cobra, ciscar como galinha e piar como pinto”. Em outros municípios, foram utilizadas substâncias como peixe cru, pimenta, urtiga e cipó ambé nas sessões de tortura.
Na época, o coronel carioca Carlos Alberto Martins Santos comandava a Polícia Militar do Acre e assumia interinamente a Secretaria de Segurança Pública. A população o tinha como sujeito arbitrário, que protegia policial violento e encobria crimes de agentes civis. Ao Varadouro, porém, ele procurou mostrar-se um militar sereno e correto. Até rasgou seda ao descrever o infrator acreano:
- O criminoso puro, frio, aqui no Acre não tem, não. Jagunço aqui no Acre, vocês já viram algum? São todos de fora, contratados em outros estados. O criminoso daqui pratica o ato ou por bebida ou por questão de mulher, mas passando o efeito é uma pessoa normal. Eu sempre digo que o Acre é um paraíso, e tenho medo de que não vá continuar assim. De certa forma, é a dificuldade de acesso que faz a gente viver tranqüilamente por aqui.
Bom, já se foram 30 anos desde que o coronel falou isso. E, certamente, ele acabou fazendo, naquela época, alguma previsão correta: os problemas enfrentados hoje pelas autoridades de segurança são maiores e mais complexos; muitos deles, originados aqui mesmo.
A edição 18 tem também, na página 3, uma entrevista histórica com o ex-vereador do PMDB de Xapuri, Chico Mendes, que, decepcionado com sua bancada, resolvera renunciar ao mandato e voltar à condição de seringueiro, retomando a luta contra os fazendeiros que desmatavam a floresta para plantar boi. A entrevista foi feita pela antropóloga Mary Allegretti, curitibana que se tornou grande amiga de Chico e a principal responsável por sua projeção internacional.
Outra entrevista que repercutiu muito se encontra na página 9: Varadouro ouviu o professor da área de Biologia da Universidade Federal do Acre, Mauricio Mendonça, presidente da Associação dos Professores (Adufac) demitido pelo reitor Aulio Gélio Alves de Souza, de forma considerada injusta. O título da entrevista é “Mais uma cabeça que rola”, e o jornal começa jogando pesado: “Depois de muitas mentiras e trapaças, o reitor da Universidade Federal do Acre”...
O jornal destaca, ainda, uma mesa redonda com as lideranças políticas da Frente Popular e o “dissidente” Abel Rodrigues Alves que reorganizava o PTB no Acre; e o desabafo de lideranças indígenas contra a Funai e os responsáveis pela Casa do Índio em Rio Branco, que não respeitavam os donos da casa. Um destes, indignado com as humilhações impostas por uma cozinheira contratada pela Funai explode: “Não vim aqui pra lavar bosta”!
Varadouro notabilizou-se por respeitar a linguagem daqueles que sofriam na pela violência, nos 1970/1980, achando desnecessário rebuscá-la, minimizando o tom junto da revolta.

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