domingo, 9 de janeiro de 2011

Varadouro 9: alguma contradição?

Varadouro 9: alguma contradição?
Elson Martins
Já imaginou o Varadouro, integrante da imprensa alternativa que combatia, entre outros males nacionais, a ditadura militar instituída em 1964, de repente aparecer apoiando um governador nomeado por essa ditadura? Pois a edição número 9, que circulou em maio de 1978, causou essa impressão e gerou discussão ideológica na redação antes de ir para as ruas. A matéria suspeita, publicada na página 3, recebeu o título: “O exemplo da sucessão e uma promessa que pode ser boa”, e saiu acompanhada de uma entrevista com o governador “biônico” Joaquim Macedo, nomeado pelo Presidente Ernesto Geisel para o período 1979/1981.
Já naquela época, o Acre atraia pesquisadores e estudantes do sul do país curiosos em conhecer e entender a forte mobilização popular de seringueiros, ribeirinhos e índios contra o desmatamento da floresta. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) tinha criado oito sindicatos na região, com cerca de 30 mil associados, e a luta desse povo não tinha similar no país, até porque o regime militar forçara a desmobilização do sindicalismo e das forças políticas de contestação ao governo. Como porta-voz desses trabalhadores da floresta, o Varadouro tinha que explicar, no mínimo, porque admitia um governo “nomeado”, quando o correto era exigir sua escolha em eleições diretas.
Durante a reunião na redação veio a explicação nestes termos: “aqui é aqui”. Traduzindo: O ex-gerente de seringal Joaquim Macedo (falecido em 2006) era acreano de Brasiléia, um homem simples, com ficha política limpa. Filiado à Arena, partido criado para dar sustentação aos militares no poder, estava sendo indicado pelo governador Geraldo Mesquita (1974/1978), do mesmo partido, mas que fez clara opção pelo extrativismo opondo-se a transformação do Acre em pastos para o boi. Embora fiel ao governo federal do amigo e protetor Geisel, Mesquita tomou partido dos seringueiros batendo de frente com os fazendeiros e especuladores de terras.
Joaquim Macedo, portanto, poderia dar continuidade ao governo de Mesquita, bem ou mal, com raízes fincadas no Acre, ao contrário do primeiro governador nomeado pela ditadura, Francisco Wanderley Dantas, que escancarou as portas do Acre para a boiada entrar. Além disso, Macedo tinha como assessor muito próximo, uma espécie de anjo da guarda, o professor Elias Mansour, acusado de ser comunista pelo então Ministro do Exército, general Sylvio Frota. E quais eram as outras opções que constavam de uma lista levada ao Presidente em Brasília?
A lista chegou a contar com nove nomes referendados na capital federal. Entre eles, o funcionário da Eletroacre, Pedro Felix, os deputados estaduais Carlos Simão e Wildy Vianna, e o coronel da reserva do Exército, Natalino da Silveira Brito, acreano de Xapuri que, por ser militar, se sentia ungido. Morando no Rio de Janeiro, o coronel passou a visitar Rio Branco de jatinho especial para anunciar a construção da Hidrelétrica de Ituxy, na região de Boca do Acre.
O texto da Varadouro diz sobre o candidato: “Ainda nem se falava em sucessão, federal ou estadual, em 1976, mas Natalino Brito já era convidado para almoços e jantares especiais em residências da capital que paparicavam o filho arredio: “Ele será governador, tem toda a pinta; Eu acho que o Mesquita nem vai terminar o mandato, e Natalino entra já como interventor; ´É militar, não tem vinculo nenhum com a política local”. O jornal fez um perfil nada favorável de cada candidato, exceto Macedo, e os definiu como “melancólicas figuras adeptas da intervenção e da deduragem”.
A edição número 9 resultou muito expressiva. Começa com a seção de cartas, que abre com um texto de Vladimir Pomar, preso político que leu o jornal no Presídio Romão Gomes, mostrado a ele pelo também preso Marco Antônio Coelho. Pomar se diz surpreso com a edição número 7 e declara: “O estilo reportagem-documentário que vocês imprimiram ao jornal confere a ele uma vivacidade que muitos do Sul perderam”.
Também merecem destaque as matérias “Índio sabe falar, sim!” (páginas 5, 6 e 7), “Um boi no trono de Galvez (páginas 9,10, 11 e 12) e “Sem terra, sem estradas...” (páginas 15, 16 e 17).  Bom proveito!

Varadouro: neste número 10

Varadouro: neste número 10
Por Elson Martins
O Editorial da edição 10, que marca um ano de existência do jornal, comemora o feito nestes termos:
“Permitam-me uma pequena digressão: há um ano, quando apareceu o primeiro número de Varadouro, alguns amigos, embora bondosamente apoiassem a iniciativa de se fazer um jornal independente e democrático para o Acre e sua gente, lá adiante, na outra esquina, sacudiam a cabeça para dizer que não passaríamos do número três. De fato, por pouco não ficamos no número dois. Simplesmente, faltou-nos o principal: a gráfica para rodar o jornal! Como, porém, já tínhamos cometido a extravagância de “importar” 300 quilos de chumbo do Rio de Janeiro, poderíamos cometer outra: por que não imprimir o jornal em São Paulo?
“Embora isso representasse uma sangria em nossas minguadas finanças, imprimimos o três, quatro e cinco em São Paulo. Posteriormente, as condições se alteraram e tiramos os demais por aqui, com a colaboração do nosso ágil linotipista Nilder Mota e, sobretudo, da Artes Gráficas Dois Oceanos. Desse modo, aos trancos, às vezes com atrasos na periodicidade, chegamos a um ano de Varadouro, uma pequena história que estamos contando a partir da página 11”..
A história começa na página 11 com uma apresentação do “pessoal” que fazia o jornal, com destaque para o “seu” Raimundo, um velho seringueiro que o estudante de direito Arquilau de Castro Melo (hoje desembargador) levou para ser vigia do prédio, mas que acabou se revelando imbatível na venda de exemplares no “pregão”. Nas páginas seguintes (12 e 13), publicamos a opinião dos leitores locais e reproduzimos a acolhida que o Vara teve na mídia nacional.  Jornal de Brasília, Pasquim, Movimento, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Boletim da ABI e o Guaporé, entre outros, massagearam nosso ego pra valer.
Celso Araújo, que escrevia uma seção de cultura no Jornal de Brasília, fez um longo comentário e o encerra desta maneira: “ Pois o ‘jornal das selvas’ vem com uma intenção parecida e já está indo corajosamente, através da população acreana, com um trabalho lúcido e quase didático. Uma linguagem simples e acessível à população local, porém corajosa e educativa”.
Entre os comentários locais não teve apenas elogio: Um soldado da PM que, obviamente, pediu para não ser identificado, disse que o jornal tinha um “pequeno defeito: faz críticas muito severas, duras até”. Bom, ele foi o único a estranhar a linha editorial do jornal; outros 35 depoimentos a aplaudem, ainda que tivéssemos orientado nossos repórteres para equilibrar a enquête.
A edição circulou em junho de 1978, mas o tema de capa tinha cara de 1º. de Maio: “Trabalhadores: se a gente se unir numa boca só...”. Dá para perceber que houve atraso de um mês em sua preparação. Nada demais! Naqueles tempos os trabalhadores de diferentes categorias viviam mobilizados o tempo todo, não apenas para comemorar uma data transformada em feriado. O jornal abriu espaço para todo mundo falar (numa boca só...): trabalhador rural, lavadeira, empregada doméstica, estivador e professora -todos comiam o pão que o diabo amassava.
Finalmente, na contracapa um seringueiro de Tarauacá conta como sua família foi expulsa do seringal Araripe pelo projeto agropecuário Cinco Estrelas. Título da matéria: “Como expulsar seringueiros com incentivos da Sudam”. O vilão da história é o capataz Gil Meireles, a quem o seringueiro Francisco Lopes dos Santos, uma das vítimas,  descreveu assim:
“Ele era paparicado pelo prefeito, reverenciado pelo juiz de direito e respeitado pelo delegado de polícia. Gil falava aos seringueiros olhando por cima, as pernas entreabertas, a mão no coldre de um 45, como nos filmes de mocinho”.

Varadouro 11: astúcia contra ratos

Varadouro 11: astúcia contra ratos
Por Elson Martins
Na edição número 10, disponibilizada no site da BFMS mês passado, o Varadouro denuncia os métodos que a Agropecuária Cinco Estrelas S.A. empregou para expulsar as famílias do seringal Araripe, no município de Tarauacá, em meados dos anos setenta. O jornal entrevistou  na edição seguinte (11) o jovem seringueiro Francisco Lopes dos Santos, uma das vítimas, que fez um relato dramático da situação.
Francisco e sua família (esposa, pai e irmãos) foram os últimos a sair do seringal, tocados pelo administrador da empresa, Gil Meirelles, que gozava de poder e prestígio junto às autoridades municipais. Durante a entrevista, Francisco falou com o repórter como se estivesse diante de seu algoz:
- “Eu não sou covarde que nem tu (Gil), não. Se eu fosse covarde não estaria sofrendo no seringal Araripe. Tu vê que são quatro anos que eu sofro a maior necessidade, porque fiquei resistindo com a minha família, na minha colocação. Eu não sou menino não. Eu nasci e me criei cortando seringa. Eu já fui até “tuxaua” da seringa no tempo do sr. Olavo Torres de Figueiredo. Tu procura saber com ele, Gil: eu sou analfabeto, não sei nem assinar o meu nome, mas não sou homem de mentira não. Eu sei contar o que é passado. Eu sou um cidadão da seringa”.
A matéria com Francisco circulou em agosto de 1978, com o titulo “O diabo pra quem merecer”, uma expressão que ele utilizou em seu desabafo. Ocupou duas página (18 e 19), com amplo levantamento das arbitrariedades cometidas pela Cinco Estrelas, contra os seringueiros tarauacaenses. Os fazendeiros agressores contavam no estado todo com os prefeitos, autoridades de segurança e membros da justiça como aliados.
Apesar da importância e do tamanho da matéria sobre a Cinco Estrelas, ela não foi destaque de capa. Outros assuntos foram escolhidos para mostrar a efervescência social e política que sacudia o Acre de então. Tinha o movimento das lavadeiras nascido dentro da redação do jornal, e a reorganização dos estivadores. Tinha a presença dos índios fazendo denúncias e determinados a recuperar suas aldeias. E tinha a vigilância de sempre, do jornal, em cima das atividades policiais civis e militares.
Um tema que quase ocupa quatro ou seis páginas foi a dos ratos que ameaçavam Rio Branco, sobretudo a periferia da cidade. A repórter colaboradora Laura de Paula, professora da UFAC que trabalhou a matéria jogou pesado na redação para obter espaço, e não se conformou com as duas páginas (9 e 10) oferecidas. Imagino que até hoje ela anda intrigada comigo e com o Silvio Martinelo, que tivemos de bater o martelo.
Na verdade, era compreensível a insistência da Laura. Ela tinha vindo do Rio de Janeiro com o marido Maurício, também contratado pela Universidade Federal do Acre, e se deparou com cenas chocantes no cotidiano da periferia de Rio Branco, decorrente do pouco caso que a Prefeitura fazia da Limpeza Pública. Os ratos a deixaram muito assustada, principalmente depois que ela ouviu o relato de que um deles tentara comer o pênis de um recém-nascido.
Na verdade, Laura se deparara com a realidade cruel das famílias expulsas dos seringais e que viviam completamente desarrumadas na cidade. Naqueles tempos escassos de cidadania, o dinheiro público servia apenas para alimentar outros ratos, de duas pernas, que pouco se lixavam para o inferno astral do povo. A impunidade grassava nas elites que só tinham olhos para suas gordas contas bancárias.
Os “empoderados” da época não perceberam a astúcia de um movimento popular que se organizava e crescia com apoio de um jornal alternativo, pequeno e pobre, mas enjoado. Tampouco imaginavam que o partido criado pelos povos da floresta chegaria ao poder nos anos 1990, impondo de lá para cá, mudanças sociais, políticas e de gestão importantes.

Nº 12Varadouro com vara curta

Varadouro com vara curta
Elson Martins
A quem serve a justiça acreana? A indagação, estendida em letras maiúsculas encimando uma pilha de velhos processos judiciais, foi manchete de capa da edição do jornal Varadouro que circulou em setembro de 1978 em Rio Branco e outras capitais do país.  Perigosamente, o jornal cutucou a onça com vara curta.
A matéria era uma longa entrevista com o advogado Pedro Marques da Cunha Neto, da Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura), e ocupou três páginas com revelações estarrecedoras. Se ainda hoje, provocar a justiça representa risco para os jornalistas, porque juizes e desembargadores se consideram intocáveis, imaginem nos anos 70, em pleno regime militar, quando em princípio todo cidadão que ousava criticar os poderes constituídos era suspeito de subversão!
O entrevistado do Varadouro, entretanto, era um advogado experiente e, sobretudo, cearense valente e ousado que se formou em direito aos 50 anos de idade depois de cansar de ser caminhoneiro no trecho Rio-Bahia. Em 1974, ele veio para o Acre fazer um concurso para juiz, entretanto, nem fez a prova, pois, antecipadamente ficou conhecendo quem seriam os três primeiros colocados. Vai daí, decidiu permanecer no Estado como advogado da Contag, defendendo os seringueiros e posseiros que estavam sendo expulsos dos seringais pelos fazendeiros, grileiros e policiais militares... mais uma mãozinha da justiça.
Pedro Marques cita exemplos de omissão, incompetência e ilegalidades que facilitavam a expulsão e expropriação das famílias da floresta. Mas sua ousadia quase lhe custou a carteira de advogado. Membros da justiça pediram que fosse impedido de exercer a profissão no Estado, o que não  se confirmou por obra e graça de outro advogado experiente, seu amigo Océlio Medeiros, que veio de Brasília para defendê-lo.
Decorridos 30 anos de sua publicação, a entrevista não envelheceu de todo, principalmente, quando descreve a justiça como um poder das elites, mais sensível aos pleitos do poder econômico que aos direitos inalienáveis do cidadão comum. Logo na abertura da entrevista Pedro Marques declara:
“Costuma-se dizer que existem três poderes independentes, mas esses não o são, não foram e nunca serão. Há sempre a interferência de um outro poder que se chama poder econômico. O poder judiciário é propositadamente emperrado, não porque queira, mas porque há um propósito nisso. Não interessa ao industrial, ao banqueiro, ao comerciante que a justiça funcione. Isso não interessaria nunca, principalmente no campo do Direito Civil”.
O sistema não deixa a justiça funcionar, prossegue o advogado citando um exemplo de sua época:
“A revolução de 1964 mexeu em tudo, cassou políticos simplesmente porque discursavam, cassou gente de todo o jeito, mas o poder judiciário ficou praticamente intocável. Por quê? Porque ele é do sistema sempre, qualquer que seja o sistema, ele se adapta”.
Com outra matéria polêmica, Fé em Deus e pé na Terra, a edição numero 12 do Varadouro instiga a classe política. Afinal, 1978 foi um ano de eleições e a Prelazia do Acre e Purus preparara uma cartilha para ensinar o povo de Deus a votar. A prelazia contava com 500 grupos de evangelização espalhados pela periferia da capital, nas sedes dos municípios, ao longo dos rios e seringais. Cada um desses grupos possuía uma média de 10 pessoas, ou seja, em conjunto poderiam eleger até quatro deputados.
A cartilha continua atualíssima, mas os grupos eclesiais de base se desfizeram por decisão emanada do Vaticano, que via chifres e rabinho na Teologia da Libertação adotada pela igreja do Acre.
Ainda no campo político, Varadouro recorreu a uma sessão de humor na última página para tirar sarro de alguns candidatos. Um deles era o ex-governador Francisco Wanderley Dantas, o Dantinha ou, segundo Varadouro “governador dos bois” que queria ser senador. Valorizando seus cabos eleitorais, o candidato mandou fazer carteirinhas com fotos dos ditos cujos. E Varadouro, aproveitando a deixa, ofereceu um modelo com a foto de um boi e os dizeres:
“Fica o Sr. Boi constituído Cabo Eleitortal para com dedicação, amor e entusiasmo, ajudar na eleição do candidato Dantas – Senador do Acre”. Claro, ele se deu mal nas urnas da floresta.

Varadouro 13: rasteira e choro

Varadouro 13: rasteira e choro
Elson Martins
Estava findando o ano de 1978. Nas eleições de novembro, a ARENA, partido de sustentação política do regime militar pressionou para que o Tribunal Regional fizesse recontagem de votos garantindo a eleição do xapuriense Jorge Kalume para a única vaga do Senado em disputa. O deputado Alberto Zaire, do MDB, também xapuriense que tinha sido anunciado como eleito, desmoronou após a recontagem de uma urna da 3ª Zona Eleitoral de Sena Madureira.
O Varadouro colocou maliciosa manchete na capa da edição de dezembro: “MDB ganha, mas não leva!” – ilustrada com uma foto (de minha autoria) em que Zaire aparece fiscalizando a apuração em Rio Branco. E na página 3, destinada aos temas políticos, publicou a dança dos números com os passos desajeitados de importantes membros do Judiciário.
O estridente desembargador e corregedor eleitoral Jorge Araken Faria da Silva (hoje aposentado e calmo), numa sessão extraordinária do Tribunal Regional Eleitoral “tascou” com seu vozeirão: “Os mapas do município (Sena Madureira) são eivados de erros”, e  sugeriu a abertura de inquérito para responsabilizar “criminal e administrativamente” a Junta Apuradora presidida pela juíza (hoje desembargadora) Eva Evangelista de Souza.
O Varadouro 13 prossegue: “O fato é que surgiram um, dois, três, quatro, cinco resultados da eleição para o Senado, chegando-se ao cúmulo de não coincidirem no final, na conferência dos mapas e boletins os totais de votantes para o Senado, Câmara Federal e Assembléia Legislativa, ou seja, não apareceram 200 votos. Uma quantia significativa, considerando que a pretensa vitória da ARENA foi de apenas 57 votos. Com razão, o MDB anunciou que iria pedir a anulação das eleições no Acre porque, segundo Alberto Zaire, ‘o TRE não tem mais condições de oferecer resultados verdadeiros”.
Eva Evangelista de Souza caiu em prantos. Mas, sua dor não chegava aos pés da dor dos perseguidos pelo governo militar e dos que viam desmoronar, mais uma vez, as expectativas de se garantir a democracia e a lisura eleitoral. Só para lembrar: em 1978, os governadores ainda eram nomeados pelo Presidente da República, um terço dos senadores eram “biônicos” (nomeados) e apenas dois partidos (Arena e MDB) disputavam eleições, digamos, “eivadas de erros”.
Mas o pessoal do Varadouro tinha esperanças e chamou atenção para um fato que poderia ter passado despercebido para a história: um terceiro candidato ao Senado, o ex-governador Francisco Wanderley Dantas, tivera votação pífia. E o jornal registrou:
“No meio de tantas dúvidas e perplexidades que envolveram as últimas eleições, uma coisa é certa: um dos grandes derrotados foi o ex-governador Francisco Wanderley Dantas que abriu as ‘porteiras do Acre’ para os compradores de terras”.
E lá está nas páginas centrais da edição, um exemplo do que fazia o pessoal do Varadouro manter o otimismo: 63 seringueiros do alto Iaco, representando mil famílias que viviam tradicionalmente nos seringais Guanabara, Icuriã e São Francisco enfrentaram os 126 proprietários paranaenses da Coapai (Cooperativa Agropecuária do Alto Iaco) que tiveram de repensar seu projeto e acabaram desistindo do mesmo. Isso depois de um aplaudido encontro na Universidade Federal do Acre em que os empresários apresentaram a proposta  para as autoridades, a classe política e a mídia, entre eles os fraudadores de eleições.
Bom proveito da edição n. 13 do Varadouro, disponibilizada em PDF neste site e podendo ser lida e copiada a gosto.

Varadouro 14: cuidado com a “onça”!

Varadouro 14: cuidado com a “onça”!
Elson Martins

Em 1979 a ditadura militar ainda funcionava a plenos pulmões no País. No Acre, o governador nomeado pelo governo federal, Geraldo Mesquita (1975/1979), conseguira através de sua amizade com o general Geisel fazer o sucessor (também “biônico”) Joaquim Macedo, ex-gerente de seringal em Brasiléia. As opções políticas na época eram tão ruins que o Varadouro acolheu a indicação como boa promessa.
Não que o jornal tivesse algum rabo preso com o governo, mas o barão Mesquita tinha sinalizado que o Acre não devia virar pasto como Rondônia, e Macedo tinha uma caída pelo extrativismo. Outra coisa que o recomendava era o cunhado Elias Mansour Simão Filho, seu Chefe do Gabinete Civil que figurava na lista montada pelo general Garrastazu Médice (um dos mais duros do regime) com os nomes de 197 comunistas infiltrados na administração pública brasileira.
Nossa relação com Elias era afável e de quase cumplicidade. Isso no começo, pois no meio do mandato de Joaquim Macedo (1979/1982), este recebera até recomendação do médico para não ler nossas provocações na imprensa, do contrário, seria difícil controlar sua pressão com remédios. No jornal diário A Gazeta do Acre, que após fracassar sob o comando de um grupo de Porto Velho caiu nas mãos da turma do Varadouro (que parou de circular em 1981) - a corda ficou esticada com o governo. Sobrevivemos a duras penas com a ajuda do empresário Wilson Barbosa, que monopolizava o abastecimento de carne na capital.
Na Gazeta, a gente só não podia reclamar do preço da carne, quanto ao resto... Vendíamos cerca de 3.500 jornais diariamente e conseguimos fazer bom jornalismo com uma equipe esforçada e competente. O repórter Arquilau de Castro Melo, hoje desembargador - produzia quatro matérias polêmicas por dia.
Bom, mas estou falando da edição 14 do Varadouro: dois anos antes do jornal bater as botas, estávamos peregrinando pelas gráficas do país porque em Rio Branco não tinha boca para imprimi-lo. Esta edição foi impressa em São Paulo nas oficinas as Empresa Jornalística AFA Ltda, na Avenida Liberdade, e para isso contamos com a solidariedade de pessoas e da imprensa nanica espalhada pelo país para encontrar a solução à distância.
Da mesma forma o número de colaboradores aumentava na redação do jornal localizada na Travessa Epaminondas Martins 141, no bairro do Bosque, precisamente uma ruela que inicia na cabeceira da ladeira da Maternidade na Avenida Getúlio Vargas. O prédio ainda está lá, quase do mesmo jeito como seu Elizeu nos alugou consciente de que teria dificuldades de receber a mensalidade. A Eurenice, filha dele, na época universitária e hoje professora doutora da Universidade Federal do Acre era nossa principal avalista.
Entre os novos colaboradores estavam Paulinho (fotografia), Serginho e José Grilo (diagramação), Raul Velásquez (ilustração), Luis Antônio (revisão) e os redatores Antônio Marmo, Mary Allegretti, Toinho Alves, Ray Cunha, Maria Auxiliadora Guimarães,  Cafieiro, Nellie, Vicent Carelli, Raimundo Nonato (Brasiléia), João Batista e Renata. Alguns desses nomes ajudaram no fechamento da edição em São Paulo.
A capa do número 14 veio com quatro manchetes de peso igual: Acre corre sérios riscos, Alucinações do Santo Daime, Mentiras sobre o Índio e Roteiro da prostituição. Essa sobre os riscos partiu do BDF (hoje Ibama). O órgão subordinado ao Ministério da Agricultura propôs “contratos de risco” com empresas nacionais e estrangeiras para exploração da madeira da Amazônia. Já pensou?  O Toinho que fez uma ilustração para a última página já imaginou passarinhos piando em inglês: Peaw! Peaw!
Mas a matéria mais polêmica na região foi sobre as “mentiras” que o antropólogo Terri Aquino descobriu num relatório da Agência do Banco da Amazônia em Tarauacá. Ao todo foram seis mentiras que o Terri teve que desmentir. A primeira dizia que não existiam reservas indígenas em Tarauacá; a segunda dizia que os índios sempre conviveram pacificamente com os seringalistas; a terceira que os índios recebem apoio dos patrões seringalistas; a quarta que os filhos dos índios estavam nas escolas... E por aí vai.
Após a publicação do relatório o Txai Terri viveu em apuros na região do Juruá, chegando a ser perseguido rios acima e abaixo por um destacamento da Polícia Militar. Chegou-se a anunciar que a “onça” tinha comido o antropólogo, e teve quem viu o corpo (ou que teria restado dele) ser desembarcado envolto num lençol branco, de um aviãozinho fretado pelo governo. Era boato. Dias depois Terri reapareceu são e salvo pelas bandas de Cruzeiro do Sul. De qualquer forma, o relatório e a repercussão de sua divulgação deixaram claro que o passado do Banco da Amazônia o condena.
Nessa edição tem ainda uma matéria importante sobre posseiros urbanos, um problema que tem origem na expulsão (pelos fazendeiros) das famílias extrativistas dos seringais; e uma carta inédita do seringueiro Rubem Rebouça de Oliveira ao Presidente da República. A carta foi recolhida pela antropóloga Mary Allegretti no seringal Alagoas, no alto rio Tarauacá em maio de 1978. O curioso é que para o Rebouça, o presidente da República ainda era o saudoso Getúlio Vargas, morto em 1954.
Não tem importância: o que ele mandava dizer na carta servia para o presidente de 1978, o general Ernesto Geisel: “Presidente da Nação, o sr. está de costas para o Acre”. Não sei informar se o general a recebeu, muito menos se Getúlio Vargas, onde quer que estivesse pôde ficar de frente para o bravo seringueiro.

Varadouro 15 e o Partido de Massa

Varadouro 15 e o Partido de Massa
Por Elson Martins
A edição 15 do Varadouro circulou em junho de 1979, num começo de verão (estiagem) acreano muito tenso. A corda estava esticada entre os seringueiros organizados e sindicalizados pela Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), e os pecuaristas chegados do sul, que ameaçavam a floresta e seus habitantes tradicionais.
Naquele ano, após o mutirão contra a jagunçada realizado em Boca do Acre, em setembro, com a presença de 300 seringueiros, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, Wilson Pinheiro, anunciaria que não iria mais permitir derrubadas no Estado. A declaração foi como uma sentença de morte: em julho de 1980, ele foi assassinado na sede do sindicato por dois pistoleiros que agiram a mando dos fazendeiros.
A capa do Varadouro, que mostra um jovem em traje de caçada, com espingarda em punho e outros paramentos, expressava a confiança dos seringueiros em sua organização sindical. A foto foi oferecida pela fotógrafa carioca Lena Trindade, que visitou o Acre registrando a luta dos trabalhadores acreanos naqueles tempos difíceis.
De certa forma, a foto dialogava também com a manchete principal: “Vem aí o partido de massa. Quem se habilita?”
Mas, ainda não se falava na criação do PT (Partido dos Trabalhadores). O partido de massa poderia ser o velho PTB de Getúlio Vargas, ou o MDB de Ulysses Guimarães, ou ainda o PS (Partido Socialista), segundo uma Frente Popular organizada às pressas para as eleições de 1978 e que não conseguira avançar sob a liderança do cruzeirense Aluízio Bezerra, de práticas políticas questionáveis.
O modelo partidário (de massa) tinha sido desenhado pelo ex-ministro do Trabalho, Almino Afonso, com os seguintes pressupostos:
“1) Deve ser um partido popular, mas não um estrito partido de classe, um partido operário. O partido representará os assalariados, incluindo a classe operária, os empregados do comércio e serviços, os camponeses e a classe média profissionalizada (advogados, engenheiros, arquitetos, jornalistas), cujas relações de trabalho são crescentemente assalariadas;
2) Deve ser um partido comprometido com um projeto nacional, com ampliação do mercado interno e distribuição de renda; modificação do perfil da produção ou o modelo para adequá-lo às necessidades internas e não à exportação; e multiplicação de empregos;
3) Deve ter a democratização como um dado permanente de sua plataforma política e não como uma postura meramente tática”...
O partido de massa acabou sendo mesmo o Partido dos Trabalhadores (PT) criado em 1980 e que ignorou a efêmera Frente Popular de 1978, orientada por Aluizio Bezerra e outros caciques da esquerda peemedebista. Estes deixaram escapar a chance de desenvolver o Acre durante o governo Nabor Júnior (1982 -1986) que preferiu “apelegar” lideranças rurais forjadas na luta contra os fazendeiros, excluindo-os do processo político.
O Varadouro 15 deu destaque também para a entrevista com o médico e professor amazonense Marcus Barros, que colocou a mão na ferida desnudando a medicina mercantilista que predominava (e por certo predomina, ainda) na Amazônia. A entrevista, feita há 20 anos, em muitos pontos se revela atual.
E a exemplo do que vinha acontecendo em outros estados, os acreanos se manifestaram contra a entrega da Amazônia às multinacionais. O jornal publicou trechos da Carta Aberta em Defesa do Acre e da Amazônia lançada pelo Movimento em Defesa do Meio Ambiente do Acre.
Finalmente, a seção de Cartas (na segunda página) que sempre apresentou novidades, nesta edição abre com a com a mensagem de Vladimir Pomar, cujo endereço postal era  um presídio de São Paulo. Nascido em Belém em 1936, Vladimir tinha na época 43 anos e era considerado inimigo da ditadura militar que governava o país.
Militante desde 1949, ajudou a fundar o PC do B em 1962. Preso no regime militar atuou clandestinamente durante a década de 70, até a extinção do AI-5 em 1978 por Ernesto Geisel. Colocado em liberdade, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (1980) e integrou a executiva nacional do PT (1984-1990). É autor de diversos livros e estudos sobre a China, a história do Brasil e da esquerda brasileira, entre eles o caso de Araguaia.
Publicar sua carta naqueles tempos não deixava de ser uma provocação ao regime militar. Mas o Varadouro corria o risco, consciente e corajosamente.

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